segunda-feira, 19 de novembro de 2018

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Últimas Cartas ao Meu Irmão Théo, de Van Gogh

Não haverá, na pintura, muitas histórias tão fascinantes como a de Van Gogh. Nem haverá, na vida em geral, muitas relações fraternas tão comoventes como a que Vincent mantinha com Théo. Além do permanente apoio emocional, foi o suporte financeiro dado pelo irmão mais novo que permitiu a Van Gogh dedicar-se em exclusivo à pintura. Em muitas das cartas que escreve ao irmão, Vincent começa por agradecer a “nota de 50 francos” e as tintas, telas e materiais de desenho que Théo lhe enviava pelo correio numa base mensal.

O livro compila a intensa correspondência enviada por Van Gogh ao irmão – as cartas que recebia de Théo desapareceram – no último ano e meio de vida, entre março de 1889 e julho de 1890. Nessa fase, o estado mental de Vincent é muito instável. Por vezes parece sereno, outras é consumido pela angústia e atormentado por alucinações.

“Aperto com força a tua mão, em espírito; não sei se te escreverei muitas vezes, porque nem todos os meus dias são suficientemente lúcidos para te escrever com um pouco de lógica”, desabafa numa carta. As primeiras missivas são enviadas a partir do asilo de Saint-Rémy, onde Vincent foi compulsivamente internado, depois de um abaixo-assinado subscrito por vários habitantes de Arles, no sul de França, onde então vivia, que, hiperbolizando alguns episódios de maior excentricidade ou “sobre-excitação” de Vincent, alegavam que o pintor era um perigo para a segurança do bairro. “Naturalmente que isto foi um golpe rude para mim, que diligenciava ser amigo de todos e não desconfiava de ninguém”, escreve, numa carta de 19 de março de 1889.

Curiosamente, é à medida que o seu estado mental fica mais instável que Van Gogh pinta alguns dos seus quadros mais emblemáticos e que a sua obra começa finalmente a conseguir algum reconhecimento entre a comunidade artística – embora só consiga vender um único quadro até morrer. “Meu caro irmão, reflexão feita, não digo que o meu trabalho esteja de todo bem, mas é o que ainda consigo fazer de menos mau. Tudo o resto, como as relações com as pessoas, tudo isso é muito secundário, pois não detenho talento para tal. Nesse campo, pouco ou nada posso fazer”, confessa, numa carta de 21 de maio de 1890.

Poucos meses depois, a 27 de julho, durante um passeio pelo campo em Auvers-sur-Oise, para onde entretanto se mudara, Vincent dispara sobre si mesmo um tiro no peito. Consegue cambalear durante a noite até à pensão onde vivia, mas não pede ajuda a ninguém e sobe em silêncio até ao quarto, onde horas mais tarde acaba por ser encontrado ferido. O médico que é chamado para o salvar não consegue remover a bala. Vincent morre dois dias depois, passando as últimas horas em desespero para conseguir manter-se vivo até à chegada do irmão. Théo chega a tempo da despedida. Encontra-o deitado na cama, a fumar cachimbo, aparentemente sereno. Deita-se a seu lado e ampara-lhe a cabeça. Nos seus braços, Vincent diz-lhe: “É assim que eu gostaria de morrer”. E foi assim que morreu.

Théo nunca recuperou da perda do irmão. Morreu seis meses depois, em janeiro de 1891, com apenas 33 anos. Foi sepultado ao lado de Vincent, em Auvers.» in Expresso curto 19/11/2018 Joana Pereira Bastos

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