quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

A MAIS ALTA TORRE – Manuel Gusmão

A MAIS ALTA TORRE
Sobre si mesmo, movendo-se, o mundo
voltou-se para o outro lado. E tu?
Viras-te para o lado de onde vem, segundo ouves,
o seu ruído concentrado na luz — Cego;
ou como se o estivesses já — imaginavas o som
das letras; tacteavas a máquina do canto;
perdias-te no labirinto dos ecos.
 Cego, mas tens as mãos e elas uma memória
por fazer. As mãos lembram-se: recordam o coração.
Repetes, recapitulas, recuperas esse gesto antigo:
Estender as mãos em frente —
não para a memória mas para a vida,
não para um sonho mas para a invenção
num gesto ou numa teia de gestos quase
automáticos,
[quase pensativos;
Ver pelas mãos o halo da lua que alucina —
Poisar as mãos na madeira da mesa ou
na pedra do parapeito ou no pescoço alto
por onde subia o canto —
E de súbito há uma coisa que descobres
onde a não esperavas: quando escrevendo o «Soneto»
de Cantata ele calculava o peso que deveriam ter
as palavras para poderem voar;
quando o poema era levantar a torre do meu canto
e recriar o mundo pedra a pedra
 ter-lhe-ia falado tão próximo, tão estranho e
tão íntimo, o eco só que fosse daquela
Canção da mais alta torre
daquele que por delicadeza a vida perdera.
Tanto quanto podes saber não da memória
acordada vinha esse eco, embora ele o pudesse
mas antes o duplo acorde seria
de tão diferentes naturezas que o espanto
nos reúne e nos enlaça nesta praia.
Sim.
Tu apenas tinhas estendido as mãos
e entre elas esse impossível espelho
abrir-se-ia, Sim, para duplicar a música
sem ser o seu eco;
Viras-te para o lado em que o mundo vem:
— Como se estivesses cego —; alguém pelo menos
o estava e um cão no sonho ladrava
a um outro alguém que se achava perdido
no canto e sob um arco ao fim da rua,
então, cantava.
O fim dessa rua era uma outra que nos cedia a luz
[— a imagem —
a ilusão do dia e do canto; — nosso, era apenas o cão
e ladrava à noite, à lua e aos astros.
— Estendes as mãos para as poisares
na madeira da mesa, na pedra do parapeito
ou para rodearem o pescoço alto: a alta torre
[do canto
Tudo poderia então agora talvez recomeçar
É como se a mesa desde sempre ali
estivesse; pronta para sobre ela assinares
as tuas últimas vontades; e a janela permitisse
distinguir visível e invisível.
É como se a janela, súbita, se tivesse aberto
sobre a mesa clara e entre si trocassem as formas e
as figuras que nas estantes do ar dançavam;
as imagens daquele mundo que as mãos desenham
e escutam por letras e por música.
É como se as mãos subissem o canto longínquo
que em ti se transforma nas vozes sobrepostas
das mais mínimas, das mais enigmáticas coisas
desta terra, onde uma vez nascidos,
como o breve fogo azul passando a cinza,
nascendo, morrêssemos.
(A Terceira Mão)
Este artigo encontra-se em: voar fora da asa http://bit.ly/2MPUa2e

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