sábado, 19 de outubro de 2019


in jornal Expresso, com a devida vénia


Entrevista
Woody Allen
“O extremismo político nunca fez nada de bom pela raça humana”


<span class="creditofoto">foto Jennifer S. Altman/Contour/Getty Images</span>
foto Jennifer S. Altman/Contour/Getty Images
Aos 83 anos, Woody Allen traz uma nova comédia romântica. “Um Dia de Chuva em Nova Iorque” nada tem de autobiográfico e contudo revela muito dos sonhos e das frustrações de um cineasta que continua a sentir-se “ansioso e vulnerável”. Estreia-se na quinta-feira
POR Francisco ferreira Em PARIS
Comédia de Woody, mesmo romântica, tem sempre travo agridoce e aí está “Um Dia de Chuva em Nova Iorque” a comprová-lo. Nas pouco mais de 24 horas que dura a aventura, um jovem casal de namorados universitários decide passar um fim de semana agradável na cidade que nunca dorme — só que o piso está ‘molhado’ e cada um deles escorrega à sua maneira. Ela chama-se Ashleigh, encontra a oportunidade de entrevistar um realizador de carisma e depois deixa-se deslumbrar pelo mundo de aparências do cinema. Ele, Gatsby de seu nome, evita encontrar os pais mas o acaso força-o a apresentar-se numa luxuosa reunião de família em que ele vai simular ser quem não é. Tal como o casal de “O Sheik Branco”, obra de estreia de Fellini (do qual “Um Dia de Chuva...” é, talvez, um longínquo remake...), Ashleigh e Gatsby enfrentam, cada um à sua maneira, uma falsa relação com a realidade. Timothée Chalamet e Elle Fanning, dois ótimos atores em ascensão, entram pela primeira vez no universo do cineasta americano e também por lá andam Jude Law, Selena Gomez, Liev Schreiber, Rebecca Hall e Diego Luna. Conversámos com Woody Allen no final de agosto numa suíte do Bristol — tal como acontecera antes da estreia de “Roda Gigante” —, o seu hotel predileto em Paris. Uma vez mais, foi um prazer ouvi-lo.
Como tem passado, sr. Woody Allen?
Acho que não estou nada mal, na medida que a idade me permite. Continuo a sentir-me ansioso e vulnerável, já era assim aos cinco anos, e aos 35, e aos 55... Agora já tenho 83. Começam a pesar-me um bocadinho. Se ao sair desta sala me der uma coisa má, ninguém ficaria surpreendido: pudera, com 83 anos! Mas continuo a trabalhar. Acabei agora mesmo de rodar um novo filme no País Basco, em San Sebastián, que é uma cidade encantadora — e a comida é deliciosa.
Como se chama esse filme?
Temos um título de trabalho, ainda não definitivo: “Rifkin’s Festival”. Talvez não dure até ao fim, estou tentado a mudá-lo. O filme passa-se, na verdade, durante o Festival de Cinema de San Sebastián mas não estou autorizado a contar muito mais [tanto quanto se sabe, trata-se de uma coprodução americano-espanhola com Christoph Waltz, Wallace Shawn e Gina Gershon no elenco e a fotografia, uma vez mais, é de Vittorio Storaro].
De qualquer forma, estamos aqui para falar sobre “Um Dia de Chuva em Nova Iorque” em que, entre outras coisas, descobrimos Liev Schreiber num papel secundário, a interpretar um realizador angustiado com o seu trabalho. Mas esse problema não parece afetá-lo na vida...
Humm, talvez se engane! Eu sempre tive problemas com o meu trabalho, do meu ponto de vista. A escrita do guião é um momento fantástico em que só dependo de mim próprio, o casting é uma aventura excitante em que tenho o apoio de pessoas com quem trabalho já há algum tempo [Patricia DiCerto colabora com o cineasta desde “Match Point”], mas quando a rodagem começa, quando ‘pomos a mão na massa’ e depois vemos o resultado, este é quase sempre desapontante. Na nossa cabeça, tudo funciona idealmente. Mas na vida real, quando ainda não se encontrou aquele décor perfeito, quando o dinheiro e os adereços faltam ou até os atores que queríamos, começamos a apercebemo-nos dos nossos próprios erros. E o cinema já não é tão bom assim.
Não está a ser demasiado severo consigo próprio?
A autocrítica e a contradição fazem parte do meu espírito. Sempre fui assim, não é agora em velho que vou mudar.
“Um Dia de Chuva...” é mais um filme seu com o nome de uma cidade no título — assunto recorrente desde que fez “Manhattan”, já lá vão 40 anos. Esta relação com um determinado espaço é crucial para si?
Eu sou um grande fã de cidades. Sempre quis que elas fossem personagens dos filmes, fosse Paris, Roma ou Nova Iorque, claro. Não me vejo a filmar em sítios de que não gosto. Quer dizer, a Nova Iorque de Scorsese ou de Spike Lee não tem nada que ver com a minha, que não é tão realista, mas sim uma Nova Iorque filtrada pela minha cabeça, de uma forma muito idealista. Não sei porquê, mas há qualquer coisa sobre áreas metropolitanas que significam sempre muito para mim, talvez porque elas são provas de civilização, porque têm teatros e livrarias. Quando cheguei aqui a Paris há dois dias a minha mulher meteu-se logo nos museus, mas eu não. Gosto de andar nas ruas. De descobrir coisas. De olhar para as pessoas.
Já lhe passou pela cabeça deixar os filmes para sempre, quem sabe para se dedicar por inteiro ao clarinete?
Se eu fosse um músico um bocadinho melhor do que na verdade sou, talvez pudesse fazer isso. Mas sou um amador. Com muito entusiasmo pelo que toco, mas um amador. Sou como um tenista de fim de semana que gosta de bater umas bolas. Jamais poderia ser um músico profissional, nem que vivesse um milhão de anos. Mas há outra coisa, sabe: filmar distrai-me. Impede-me de pensar que tenho 83 anos. Obriga-me a focar-me nos problemas triviais de cada projeto: as personagens, o guarda-roupa, a fotografia. Enquanto estiver focado nisso, estou bem. Com demasiado tempo livre ia tornar-me preguiçoso. Podia ler mais, ver mais desporto na televisão — e já vejo bastante — mas ia amolecer. E não quero. Então, enterro-me em trabalho o mais que posso.
Eu sou um grande fã de cidades. A Nova Iorque de Scorsese ou de Spike Lee não tem nada que ver com a minha, que não é tão realista, mas sim uma Nova Iorque muito idealista”
Fazer filmes significa hoje o mesmo para si que significava há três ou quatro décadas?
Ouça, eu faço filmes apenas e só porque há pessoas que os financiam! Não há nenhum segredo aqui. Se amanhã me dissessem que não há dinheiro, ficaria muito contente a escrever só para o teatro, ou livros, porque gosto de escrever. Agora, se há quem continua a pagar os filmes, sinto que não posso dizer ‘não’. A parte mais dura e difícil do cinema para um cineasta é arranjar dinheiro para um filme. Tudo o resto exige muito trabalho, mas não se compara àquele suplício.
É sobretudo na Europa que consegue esse financiamento?
Eu embolso-o de qualquer lado em que posso obtê-lo.
“Take the Money and Run”...
Ah! Esse foi há 50 anos. A Europa tem-me ajudado bastante. Eu tenho tido sorte porque, precisamente desde “Take the Money and Run”, os meus filmes foram sempre apreciados na Europa. Nunca consegui explicar esta atração, mas ela existe. E tenho beneficiado desta lealdade, de França a Espanha, da Itália à Alemanha... Eu podia arranjar mais dinheiro nos Estados Unidos mas eles exigem uma maior colaboração. Dizem-me que não querem ser tratados como banqueiros, querem saber quem serão os atores, ler o argumento, etc. Aqui na Europa, é diferente. Dizem-me: “Nós pagamos, avançamos com o dinheiro como um investimento, o senhor faça o filme que quiser.” Tenho mais liberdade, é óbvio.
Mudemos de assunto. Em “Um Dia de Chuva...” há um momento em que uma personagem desabafa que os jornais, agora, são todos tabloides. Ora, a imprensa atravessa, de facto, um momento difícil. Porque é que essa frase entrou no seu guião?
Porque acho que é a verdade. Houve um tempo em que havia tabloides e alguns jornais nos EUA que resistiam a essa tentação, mas a situação tornou-se tão desesperada para a imprensa — e falo da imprensa escrita — que até os melhores jornais tiveram que abraçar o sensacionalismo para sobreviverem. E eu acho que esse foi um passo em falso. Um tiro no pé. Quando eu era um jovem rapaz, havia uma dúzia de bons jornais em Nova Iorque. Comprava-os pela manhã, queria saber o que se passava na Broadway, por exemplo, e lá estava a crítica, boa ou má pouco importa, era a opinião do espetáculo que se estreara na noite anterior. Esse espaço foi-se reduzindo cada vez mais. E agora quase desapareceu porque a tal dúzia de jornais também já não existe.
Foi sempre um bom leitor do que se passa à sua volta?
Sempre tive no coração um feeling muito positivo, e romântico pelo jornalismo e por jornalistas. Quis em tempos ser um, aliás. Estava a pensar o que fazer com a minha vida e julguei que esse podia ser o caminho.
Como crítico?
Não, como repórter de crimes. Interessavam-me essas histórias. Ou ser jornalista desportivo. Acreditei sempre na ideia do repórter como um herói, alguém que chega e descobre a informação verdadeira e salva aquele desgraçado que foi falsamente condenado, etc. Esses dias são cada vez menos frequentes. E é uma vergonha que assim seja.

<span class="creditofoto">foto Jennifer S. Altman/Contour/Getty Images</span>
foto Jennifer S. Altman/Contour/Getty Images

Falou em romantismo pela imprensa. E você, sempre olhou para si próprio como um romântico? “Um Dia de Chuva...” é, de novo, uma comédia romântica.
Sempre me vi assim, é verdade! Mas é difícil sermos objetivos sobre nós. Vemo-nos de uma certa maneira e o mundo olha-nos de uma maneira muito diferente. E isto é que é chato! Mas esta diferença de pontos de vista, para quem quiser reparar bem, está muito presente em todos os meus filmes. E é por isso que não concordo assim tanto com quem diz que eu faço filmes narcisistas, enfim, cada qual que julgue o que quiser. No ecrã há o que nós somos, o que uma determinada personagem é, mas também o modo como o mundo a vê. E o mundo nunca a vê da mesma maneira. Enquanto eu crescia, sempre olhei para mim como um romântico.
Os seus espectadores também, quando o viam no ecrã...
Nem todos. E se não apareço mais nos meus filmes é simplesmente porque estou demasiado velho para interpretar o ‘protagonista romântico’. Então fico atrás da câmara: assunto resolvido. De qualquer forma acho que a maioria dos meus espectadores me viu sempre como o cómico de serviço. O fulano divertido. The comedian. Não como o romântico que eu acho que sempre fui. As comédias românticas, de resto, eram os filmes de que eu mais gostava na juventude.
Em que momento é que decidiu que Timothée Chalamet poderia ficar com o papel de Gatsby em “Um Dia de Chuva...” e entrar na sua já vasta galeria de personagens? A pergunta não vem ao acaso: eu acho que ele tem muito de si no filme.
Bom, o meu diretor de arte Santo Loquasto, com quem trabalho há décadas, fez uma peça de Tchekhov na Broadway e alertou-me para este rapaz: “Tens que conhecer o Timothée, ele é muito bom e acho que ele pode interpretar material novo — e muito bem.” Conheci-o, gostei dele, ele leu [o guião] muito bem e concordei. Nunca tinha visto nada dele antes. Mas é curioso o que diz: já me aconteceu mostrar um guião meu a um jovem ator com quem nunca trabalhei e notar que ele tende a parecer-se comigo. E é natural que isso aconteça, porque o guião é meu, escrevi cada frase, cada palavra, cada piada, e não tolero desvios e improvisos. Isto não é voluntário, acontece espontaneamente. Há sempre um feeling of me na personagem. É engraçado que gostei que isso não tenha acontecido quando fiz “Midnight in Paris” [2011] com o Owen Wilson, um ator um bocado mais velho. A personagem dele tinha a sua própria persona, muito forte, uma antítese do que eu sou, não havia qualquer rasto de mim, de todo.
Há uma cena em que Gatsby Welles, a personagem de Timothée, toca piano. Ele tocou-o realmente, em direto?
Sim, tocou. Foi ele.
Acho que a maioria dos meus espectadores me viu sempre como o cómico de serviço. O fulano divertido. The comedian. Não como o romântico que eu acho que sempre fui”
Voltemos ao dinheiro: alguma vez jogou póquer, ou qualquer outro jogo, para ganhar dinheiro extra para os seus filmes, tal como o Gatsby, que se autofinancia desse modo?
Eu costumava jogar póquer precisamente por essa razão!
Quando é que isso aconteceu?
Quando fui para Inglaterra trabalhar como ator no horroroso “Casino Royale” original [estreado em 1967], ou seja, antes de fazer o meu próprio cinema. É um filme catastrófico, a sério que é. Ninguém me conhecia. Não tinha ainda feito nada de importante. Nós passámos imenso tempo na rodagem e não havia nada que fazer. Então jogava póquer, obsessivamente. E com gente bem conhecida, atores célebres, eles estavam a fazer “The Dirty Dozen”, do Bob Aldrich, ali perto: o John Cassavetes estava lá, o Telly Savalas, o Charles Bronson, o Lee Marvin... Não havia noite em que não jogássemos.
Era bom jogador?
Era um muitíssimo bom jogador porque não tinha sentido de humor algum. É que todos eles jogavam por diversão e prazer. Queriam passar um bom bocado, bebiam que se fartavam, e eu estava ali a jogar como quem joga a vida. Ganhei muito dinheiro. Fiz uma soma muito razoável. Aliás, era raro haver noite em que não ganhasse. Deixei-os muitas vezes depenados, confesso.
Porque é que parou?
Ah, foi por culpa do célebre produtor de teatro americano David Merrick. Ele próprio tinha sido um grande jogador no passado e, num certo dia, fez-me ver que o jogo era uma perda de tempo. E nunca mais joguei.
Como é ter que viver na América de Donald Trump hoje em dia?
É de cortar à faca. Sabe, eu sou democrata, sempre fui. Votei em Hillary Clinton. Não sei se se recorda mas previ naquela altura que ela iria ganhar com bastante certeza, mas não ganhou, e eu enganei-me, como tantos outros. Estou calmamente à espera das próximas eleições para que um democrata volte a ganhar. Acho que a razão vai triunfar, que esta direita extremista vai recuar e que isso terá um efeito positivo no resto do mundo. Posso estar enganado. E se estiver, vai ser terrível. O extremismo político nunca fez nada de bom pela raça humana.
Você dirigiu Donald Trump em “Celebrity”...
Sim! Longe vai o tempo em que eu pensava nele como alguém que em tempos contratei como ator. E quer saber mais: ele era bom ator! Mesmo muito bom! Chegou ao set, foi muito cortês com toda a gente, fez o que lhe foi pedido, sabia as suas falas, essa foi a boa parte. Como Presidente, a situação é diferente... Tenho que dizer isto: a subida ao poder da direita e da Administração Trump tem dado azo na América a um enorme aumento da sátira e contribuído, também, para o aparecimento de novos comediantes, sobretudo na televisão. Eles reagem instantaneamente às declarações do Presidente. São muito criativos. Mas eu não sou um deles. Nunca fui um cineasta político.
Estou calmamente à espera das próximas eleições para que um democrata volte a ganhar. Acho que esta direita extremista vai recuar. Posso estar enganado. E se estiver, vai ser terrível”
Ainda hoje conseguiria ditar para um gravador as coisas pelas quais a vida merece ser vivida, como em “Manhattan”?
Tem graça, houve uma senhora que em tempos fez um reparo e me disse que eu não incluí os meus filhos nessa lista, apesar da minha personagem ser pai. Acontece que [na época de “Manhattan”] eu não era ainda pai na vida real. Nunca tal me ocorreu, mencionei apenas as coisas de que gostava. Não tinha qualquer experiência com crianças. Mas desde que as tenho, e desde que a minha vida gira em torno da minha mulher e dos meus filhos, eles seriam as prioridades de topo para mim, não aquele restaurante chinês, ou aquele filme, aquele disco...
Timothée Chalamet não é o único jovem ator de “Um Dia de Chuva em Nova Iorque”, temos também Elle Fanning ou Selena Gomez, que também chega ao seu cinema pela primeira vez. Timothée tem 23 anos, Selena 27, Elle apenas 21. São pessoas muito diferentes de si quando tinha a mesma idade?
Eu era muito menos sofisticado. As pessoas de 20 anos estão hoje extremamente cientes do que são, andam muito informados, sabem tudo sobre drogas, sexo, política, têm uma grande vantagem sobre mim. Eu era retraído, tímido, vivia refugiado no meu pequeno contexto burguês.
Mas eu não sei — e duvido muito — se as pessoas de 20 anos ouvem Bing Crosby ou Erroll Garner, e este filme está cheio de canções deles. A banda sonora foi uma maneira de se relacionar com a sua própria juventude?
Não sei. É provável. Talvez, intuitivamente. Eu faço sempre isso, ponho a música de que gosto, é uma das partes que me dá mais gozo nos filmes. No princípio, não há música, de todo. É depois, na montagem e na pós-produção, que vou à prateleira buscar os meus discos. Foi por isso que nunca contratei ninguém — ou só raras vezes o fiz — para compor uma banda sonora. Faço a minha juke box. E é essencialmente jazz music, clássica, ou música popular americana de uma certa era. Nada disto é novo para mim: cresci a gostar de música mais antiga, os meus amigos do liceu só queriam música pop, estavam-se nas tintas para Charlie Parker ou para Cole Porter.
Há uma bela mulher em “Um Dia de Chuva...” que logo se descobre ser uma prostituta: Terry. Não é a primeira nos seus filmes mas a aparição dela é inesperada. E é por causa dela que depois Gatsby tem aquele diálogo com a mãe que altera por completo a perceção que ele tinha da sua própria vida. Porque é que escreveu esse diálogo?
Senti que a história ia dar a esse diálogo e que o filme iria florir a partir daí. Achei divertido seguir as aventuras daqueles dois jovens universitários que julgam ir passar um bom bocado a Nova Iorque e depois se separam em várias aventuras, mas era preciso que a experiência florisse, que fosse dar a algum lado. E essa mudança começa, de facto, quando Gatsby encontra a prostituta no [bar] Carlisle. Ele estava a ter um mau dia. Não quer relacionar-se com a família. No fim, talvez aprenda duas ou três coisas essenciais. E essa mudança é necessária.
Este é também um filme sobre descoberta de identidades. Tem noção do momento em que descobriu a sua?
Eu lembro-me que, quando andava no liceu, todos os meus amigos tinham de fazer a grande decisão de escolher o que queriam estudar na universidade. Uns foram para medicina, outros para direito, outros para arquitetura, e a mim também me tocava decidir. Foi então que descobri que tinha algum sentido de humor e que fazia rir os outros. E que a minha identidade era essa. Isso funcionou para mim a nível profissional muito rapidamente. Ainda teenager, já estava a vender o que eu produzia. Soube então que, para o resto da vida, estaria ligado à comédia, e escrevi, escrevi muito, para a televisão, rádio, cabarets, até chegar aos filmes.
Alguma vez pensou em quem é a sua audiência?
Boa pergunta. Já, e nunca tirei grandes conclusões disso. Limito-me a fazer filmes, eles passam onde passam, se não os quiserem ver, não vejam, foi sempre assim. Eu não sei quem é a minha audiência. Mas sei que a tenho tido e que ela tem sido consistente um pouco por todo o mundo. Os meus filmes são exibidos na China, no Japão, em Marrocos, na Argentina e há sempre um pequeno público, nada que me faça ganhar uma fortuna, mas ele existe, em todo o lado... Até nos Estados Unidos, imagine!
Chateia-o que os filmes sejam cada vez menos vistos nas salas?
Isso é uma tristeza. A sério. Quando cresci, um dos grandes prazeres da vida era ir ao cinema ver cinema, com a namorada sexta-feira à noite, com a família aos fins de semana ou só como pretexto para faltar às aulas... O cinema era tudo. Até aquele fenómeno de fazer fila, de esperar pela vez, de comprar o bilhete, olhar para quem está à nossa volta e depois entrar numa grande e escura sala, em frente a um grande ecrã com gente carismática que nos ia contar uma história. É inigualável. Agora olho para as minhas filhas a verem filmes nos computadores. Se calhar, nem são filmes. E penso: caramba, que feliz que eu fui na minha infância quando ia ao cinema, com a minha lata de pipocas... Esta lenta erosão da experiência do cinema em sala é uma das coisas que mais me entristecem.
Por falar em coisas tristes: em meados deste ano, soube-se que nenhuma editora em Nova Iorque quis publicar a sua autobiografia por assuntos que estão ligados à sua vida privada. Um absurdo completo: o mais natural era esperar uma batalha de ofertas. Em que pé estão as coisas?
Mas vai ser publicada. Não quero falar muito disso mas, com sorte, será ainda este ano e mais cedo do que as pessoas pensam.
O que é que descobriu ao escrever sobre si próprio?
Olhe, descobri que não tive uma vida nada excitante por aí além. E ainda bem! Sou muito middle class. Levanto-me cedo todas as manhãs, faço um bocadinho de exercício antes do pequeno-almoço, começo a trabalhar, faço uma pequena pausa para praticar clarinete, depois vou dar uma volta com a minha mulher, vejo uns amigos. É é só. Nada de muito excitante. Não tenho casa de campo. Nem casa de praia. Nem barco, muito menos avião. Há uma série de anos, uma jornalista entrevistou-me e escreveu uma longa história sobre mim para a “Cosmopolitan”. O seu nome era Francine du Plessix Gray. Era muito conhecida nos Estados Unidos. E o artigo dela sublinhava: “Sobre Woody Allen, não há grandes histórias para contar.” E tinha razão.
Gosta de dias de chuva em Nova Iorque?
Eu acho que sabe a resposta a essa pergunta.
E em “Um Dia de Chuva em Nova Iorque”, quem é você?
Diria que o mais próximo de mim é o Gatsby. Com a mesma idade dele, também já tinha aquela enorme veia nostálgica dentro de mim.

1 comentário:

Meg disse...


Quantas saudades,quantas!!!
Meg