A casa de Rembrandt
 
  
 Um autorretrato de Rembrandt datado de 1642 Royal Collection Trust/Her Majesty Queen Elizabeth II
Nos 350 anos da morte de Rembrandt, a Dulwich Art Gallery apresenta em Londres a mais original exposição sobre o pintor
texto jorge calado em Londres
Em
 Rembrandt, tudo o que luz é ouro. Em 1639, aos 33 anos, o pintor 
comprava a casa do nº 4 da Breestraat (rua Larga), em Amesterdão, por 13
 mil florins, uma fortuna à época. Cinco pisos: cave, sobreloja, dois 
andares de elevado pé-direito e águas-furtadas. (Para termos de 
comparação, lembro que um par de sapatos custava então meio florim e que
 em 1626 os holandeses tinham convencido os lenapes — americanos nativos
 — a venderem-lhes a ilha de Manhattan pelo equivalente em géneros de 60
 florins, isto é, cerca de 810 euros em moeda atual.) Rembrandt não 
comprou a casa a pronto: pagou um quarto do preço e o resto seria 
satisfeito a prestações, com juros, ao longo dos anos. O dinheiro 
reluzia mas preocupava. Os impostos eram muitos: na travessia diária de 
pontes, portas e comportas, na compra e venda de animais, no emprego de 
serviçais, nos petiscos servidos em tabernas, na posse de casa (uma 
espécie de IMI para pagar o sistema de guarda noturna), etc.
 
Filho
 de um moleiro e da filha de um padeiro, Rembrandt van Rijn (1606-69) — o
 apelido significa ‘do Reno’, o nome do moinho paterno — já era um 
pintor credenciado e com uma corte de discípulos quando se mudou de 
Leiden, onde nascera, para Amesterdão em 1631. Três anos depois casava 
com Saskia von Uylenburgh, prima de Hendrick, pintor e negociante de 
arte que acolhera Rembrandt em Amesterdão. Com janelas altas viradas a 
Norte, a nova casa proporcionava a iluminação fria preferida pelos 
artistas. Seria a sua ‘casa de sonho’, situada num bairro de pintores, 
editores e judeus sefarditas oriundos de Portugal com nomes como 
Andrade, Castro, Lopes, Matos, Rodrigues ou Pinto. A Sinagoga Portuguesa
 abriu no mesmo ano nas traseiras da Breestraat, sendo mais tarde (1675)
 substituída pelo esplêndido edifício hoje célebre em todo o mundo.
Foi
 aqui, na casa de Breestraat, que Rembrandt atingiu o apogeu da sua 
carreira e viveu os 20 anos mais afluentes e significativos da sua vida;
 anos também assombrados por tragédias, como a morte dos três primeiros 
filhos, um menino e duas meninas, na infância — naquela época a 
mortalidade infantil rondava os 75 por cento — e em 1642 a morte de 
Saskia, nove meses após ter dado à luz Titus (que morreria em 1668, 
apressando a morte do pai inconsolável no ano seguinte). Embora 
conduzisse uma vida frugal dedicada ao trabalho, Rembrandt esbanjava 
dinheiro nos adereços e acessórios necessários à sua arte e ao ensino de
 dezenas de discípulos: pinturas de outrem (como investimento?), 
gravuras, bustos marmóreos de imperadores romanos, armaduras japonesas, 
elmos luxuosos (como o usado por Palas Atena no pintura do Museu 
Calouste Gulbenkian), trajes e tecidos bordados a ouro, minerais 
exóticos, etc. Em 1656, as dívidas eram tantas que se viu obrigado a 
declarar falência. A justiça procedeu a um inventário de todos os bens 
(que foram leiloados para pagar a alguns credores), e a ‘casa de sonho’ 
vendida por 11.218 florins, isto é, com prejuízo considerável. Em 1660, 
Rembrandt mudava-se com a companheira Hendrickje, mais a filha Cornelia 
(nascida em 1654) e o filho Titus para uma casa pequena em Rozengracht, 
partilhada com o senhorio e respetiva família. Três anos depois, 
Hendrickje finava-se de morte súbita, vítima da peste. Entretanto a moda
 mudara e as preferências burguesas iam então para uma pintura mais viva
 e clara. A verdade de Rembrandt tornara-se passadiça, mas continuou a 
pintar até morrer.
Dulwich Picture Gallery
A
 Dulwich Picture Gallery — a mais antiga galeria de arte de Inglaterra, e
 a primeira no mundo a ser riscada de raiz para exibir obras de arte — 
foi fundada em 1811 para acolher a coleção formada para Stanislaw 
August, último rei da Polónia (entretanto destituído), e doada ao 
Dulwich College, estabelecido em 1611. O edifício da Galeria, uma 
obra-prima de Sir John Soane completada em 1817, criou um novo sistema 
de iluminação: as claraboias dos tetos difundem a luz natural, ideal 
para a observação de pinturas. Sendo a luz o agente condutor da arte de 
Rembrandt, a Dulwich Picture Gallery estava fadada para receber uma 
importante exposição Rembrandt, até porque inclui na sua coleção três 
obras do genial pintor: retrato de “Jacob de Gheyn III” (1632), 
“Rapariga à Janela” (1645) e retrato de “Jovem, Talvez o Filho do 
Artista, Titus” (1663). “A Luz de Rembrandt” incide sobre a obra 
produzida na casa de Breestraat, mas fá-lo sob uma perspetiva nova — a 
da luz e iluminação. Não será a maior exposição jamais organizada sobre 
Rembrandt, mas é talvez a mais humana e reveladora: dezasseis pinturas —
 o Rijksmuseum em Amesterdão só tem mais seis — e vinte e tal desenhos e
 gravuras, todas montadas e iluminadas de modo a refletir os ânimos e 
intenções do artista. A mais comovente será o desenho do “Estúdio do 
Artista” (ca. 1659), uma rara representação do interior da casa e da 
intimidade do pintor: com a metade inferior da janela tapada, um pano 
suspenso do teto dirige a luz da janela para o torso nu do modelo, que 
parece irradiar luz.
 
  
 “Rapariga à Janela” (1645) Dulwich Picture Gallery
Uma
 tentativa frustrada de roubo de duas pinturas na noite de 13 de 
novembro passado levou ao encerramento da galeria durante duas semanas; 
as obras em causa, “Peregrinos em Emaús” (1648) e “Filémon e Báucis” 
(1658), regressaram entretanto aos museus de origem, Louvre e National 
Gallery of Art, em Washington, D.C., respetivamente. Preocupante também,
 na medida em que uma das pinturas da Casa — o retrato de Jacob de Gheyn
 III — detém o recorde mundial do Guinness para a pintura mais roubada e
 recuperada: quatro vezes (a última em 1983)!
Rembrandt
 era muito escrupuloso no que respeita à montagem e iluminação dos seus 
quadros. As (poucas) cartas que sobraram, além de tratarem de questões 
monetárias, contêm recomendações aos compradores sobre a melhor maneira 
de expor as suas obras: altura de parede a que deviam ser penduradas, 
direção da luz, etc. Dulwich foi ainda mais longe: pediu a um famoso 
diretor de fotografia (com créditos em filmes de John Boorman, Tim 
Burton e David Cronenberg), Peter Suschitzky, para desenhar as luzes de 
cada sala e iluminar individualmente as obras expostas (concebidas para 
serem apreciadas à luz das velas em caixilhos pretos, em vez de 
dourados). Segundo Suschitzky, fotografia e pintura ficaram abraçadas 
desde a invenção da primeira. (Peter é filho de Wolfgang, o lendário 
fotógrafo imigrante inglês, fugido ao nazismo, que morreu em 2016 aos 
104 anos.) O cinema, porém, é muito diferente da pintura. Suschitzky 
olha para um quadro de Rembrandt sabendo que a ‘alma visual’ da 
composição emana da luz.
AS TERRAS BAIXAS
Com
 uma economia mercantilista, as Sete Províncias Unidas das Terras Baixas
 (Nederland) eram então a mais rica e próspera nação do mundo (e também 
aquela onde os impostos eram mais altos). O dinheiro reinava, e 
Amesterdão impusera-se como importante centro financeiro e nó de 
comércio marítimo. A geografia das planuras convida à contemplação do 
horizonte — situação que terá facilitado o nascimento da pintura 
paisagista na Holanda. Por outro lado, a emergência de uma burguesia 
independente e endinheirada, republicana, mercantilista e calvinista 
(mas tolerante em relação às outras religiões, incluindo a católica, 
proibida em Amesterdão em 1580), potenciou uma explosão criativa na 
pintura. Nos países católicos o patrocínio emanava duma aristocracia e 
Igreja aparatosas e exibicionistas. Nas Províncias Unidas havia então 
centenas de burgueses — comerciantes, administradores e gente de 
cultura, homens e mulheres — apostados em decorar as casas com os seus 
retratos e pinturas de cenas domésticas em dimensões razoáveis. Pensem 
em Jan Steen, Pieter de Hooch e Johannes Vermeer! Os burgueses podiam 
vestir-se de preto mas o ouro brilhava! Eram estes os clientes de 
Rembrandt. No seu último grande retrato coletivo, “Os Mestres de 
Tecidos” (1662), o pintor apresentou magistralmente cinco síndicos da 
Guilda dos Vendedores de Tecidos: dois eram católicos, outro 
remonstrante, outro ainda menonita (anabatista), sendo o presidente 
membro da Igreja Reformada.
Não será a maior 
exposição jamais organizada sobre Rembrandt, mas é talvez a mais humana e
 reveladora: 16 pinturas e vinte e tal desenhos e gravuras, todas 
montadas e iluminadas de modo a refletir os ânimos e intenções do 
artista
Existiam fortes ligações culturais e 
científicas com a Itália. Michelangelo e Caravaggio eram bem conhecidos 
nas Terras Baixas. Os tempos eram de observação e contagem (também de 
dinheiro). Embora o barómetro tivesse sido inventado em Itália por 
Evangelista Torricelli, o microscópio, telescópio e relógio pendular 
foram todos inventados nas Terras Baixas no século XVII. Terá sido 
talvez o oculista neerlandês Hans Lippershey quem primeiro tentou 
patentear o telescópio de refração em 1608; a verdade é que no ano 
seguinte Galileo Galilei já o usava para perscrutar o céu e fundar a 
física moderna. O filósofo Benedito (Baruch) de Spinoza, vizinho de 
Rembrandt, ganhava a vida a desbastar e polir lentes. (Judeu sefardita, 
era filho de Miguel de Espinosa, nascido em Vidigueira, no Alentejo.) 
Detrás de toda esta pintura estão os progressos científicos da ótica e 
das técnicas de observação. Para mim, uma das joias expositivas é a 
“Paisagem com o Descanso na Fuga para o Egipto” (1647) — a única 
paisagem noturna pintada por Rembrandt que sobreviveu — nitidamente 
inspirada na pintura homónima (ca. 1610) de Adam Elsheimer (que fora a 
primeira a representar realisticamente o céu, de acordo com as 
observações de Galileo).
O MUNDO É UM PALCO
Rembrandt
 von Rijn foi, porventura, o maior pintor de todos os tempos. Não é 
apenas século e meio que o separa de Leonardo da Vinci (1452-1519), o 
outro artista genial celebrado em 2019. Ambos viveram sessenta e tal 
anos, mas enquanto Leonardo criou umas 15 pinturas, Rembrandt deixou-nos
 mais 350 pinturas autenticadas, além de 300 gravuras e uma centena de 
desenhos completos. Observador atento da natureza (em especial da 
humana...), Rembrandt dava regularmente longos passeios a pé pelos 
arrabaldes de Amesterdão, mas nunca saiu das Províncias Unidas. Sabe-se 
que gostava de animais, pois desenhou e gravou cavalos, burros, ovelhas,
 vacas, patos, mochos, macacos, elefantes, leões e uma chusma de cães e 
gatos. Pintar era, para ele, uma oportunidade de experimentar ideias, 
técnicas e estilos (como aconteceu com os retratos de grupos).
Não
 deixa de ser curioso que a Dulwich Art Gallery tenha entregue a 
iluminação a um homem do cinema quando a arte de Rembrandt era 
eminentemente teatral. As pinturas bíblicas (e não só) são obviamente 
encenadas na imaginação do artista, com os vários personagens em animado
 diálogo. Há ainda nítidas referências cénicas nos enquadramentos: 
janelas e arcarias a fazer de proscénio, cortinas (nas camas fechadas de
 docel), etc. Sabe-se que Rembrandt frequentava o teatro ou, pelo menos,
 procurava a companhia de atores (quanto mais não fosse para os 
desenhar). “A Luz de Rembrandt” começa com uma citação apropriada: “O 
mundo é um teatro, onde cada um representa o seu papel e tem a sua 
parte” — a inscrição que Jan Vos apusera à entrada do seu teatro em 
Amesterdão, inaugurado em 1638. Para Vos, “uma peça é como uma pintura 
falante”, viva e bem colorida. O mesmo dissera Shakespeare pela boca de 
Jaques (em “Como lhe Aprouver”, ca. 1600): “Todo o mundo é um palco,/ E 
todos os homens e mulheres meros atores;/ Todos com as suas saídas e 
entradas;/ E cada homem no seu tempo representa várias partes,/ Os atos 
sendo sete idades.” Se há pintor que nos mostrou as ‘sete idades do 
homem’, das crianças babando-se ao colo das mães às velhas desdentadas, 
ele é Rembrandt! (Shakespeare era 42 anos mais velho que Rembrandt e 
morreu quando este tinha dez anos.)
 
  
 “A Negação de São Pedro” (1660) Rijksmuseum, Amesterdão
Mesmo
 em quadros mitológicos e religiosos, o pintor pintava o que via, sem 
concessões a um ideal clássico de beleza (o que lhe valeu muitas 
críticas). A bíblica Susana espreitada por velhos lúbricos ou a Danae 
fecundada por Júpiter e mãe de Perseu podem ser mulheres reais de seios 
flácidos e barriga inchada, ou com vincos de espartilhos na cintura e 
marcas de ligas nas pernas. Os modelos seriam prostitutas, serviçais ou a
 própria consorte. Por exemplo, tudo aponta para que a “Mulher 
Banhando-se Num Riacho” (1654) não fosse outra senão a companheira 
Hendrickje Stoffels. Duas vezes por ano, Rembrandt retratava-se a si 
próprio, acabando por criar uma autobiografia de quase uma centena de 
autorretratos (entre pinturas, gravuras e desenhos). Por vaidade? 
Certamente que não; apenas pela curiosidade e interesse em acompanhar as
 várias idades do homem.
BEWEEGLIJKHEID
A
 magia da pintura de Rembrandt reside na composição, nos tons 
monocromáticos de cor e no jogos de luz, sombra e escuridão. O que não 
(ou mal) se vê é tão importante como o rosto melhor iluminado. Com 
Rembrandt estamos longe da paleta de cores vistosas da Renascença. (O 
“Sepultamento de Cristo”, pintado cerca de 1634, é praticamente uma grisaille.)
 As preferências vão para tons escuros e acastanhados, rasgados por uma 
labareda de luz (cuja origem está, muitas vezes, escondida, como 
acontece às moedas de ouro numa bolsa). Também é verdade que a usura do 
tempo se encarregou de escurecer as sombras. Depois de limpa e 
restaurada, a célebre “Ronda da Noite” (1642) surgiu mais diurna do que 
nunca!
Leonardo recorreu ao sfumato
 para conferir ambiguidade aos contornos e pormenores das figuras belas e
 serenas que pintava, como por exemplo no enigmático sorriso de Mona 
Lisa. Rembrandt usou a dialética do chiaroscuro
 para quebrar a chamada ‘quarta parede’ (que separa o observador do que 
se passa no palco ou no quadro). A luz é apenas a ferramenta dramática 
para engatar o observador. Guiados pela geometria dinâmica da 
composição, vemos os personagens a saltar da tela para continuar a 
discussão na nossa companhia. Somos todos povo, mas bafejados pela luz 
somos também todos divinos. É este o milagre da arte de Rembrandt. A 
meio da exposição somos surpreendidos numa sala às escuras por “Cristo e
 Santa Maria Madalena no Túmulo” (1638). O quadro representa uma 
alvorada campestre: Madalena veio para ungir o corpo de Cristo com óleos
 preciosos; dois anjos guardam o túmulo vazio de Cristo; Madalena leva 
tempo a reconhecer que o estranho com chapéu de jardineiro é Cristo 
ressuscitado. Gradualmente a sala ilumina-se para revelar a aurora da 
pintura. O reconhecimento da divindade de Cristo por Madalena converge 
com a nossa descoberta da genialidade de Rembrandt.
Numa
 carta ao diplomata Constantijn Huygens, um dos seus primeiros patronos,
 Rembrandt explicava que queria atingir na sua arte a maior e mais 
natural beweeglijkheid, uma palavra ambígua
 que tem que ver com movimento e/ou emoção interior. Quem melhor acertou
 na definição foi um dos seus discípulos, Samuel van Hoogstraten, ao 
escrever que Rembrandt conseguia capturar os “movimentos da alma”. É o 
que descobrimos ao contemplar qualquer dos seus retratos ou 
autorretratos: reconhecemos aquelas pessoas como próximas, isto é, 
nossas contemporâneas. Isto faz toda a diferença! Independentemente da 
época e estatuto social, adivinhamos o seu carácter e temperamento e 
sentimos as suas emoções. (A propósito, Constantijn era pai de 
Christiaan Huygens, célebre físico e matemático, inventor do relógio de 
pêndulo e criador da teoria ondulatória da luz.) Newton e Huygens tinham
 ambos razão. A luz tanto pode ser um feixe de corpúsculos — como a 
poalha de ouro com que Júpiter inseminou Danae — ou um ramalhete de 
ondas douradas como as que nos atraem aos rostos pintados por Rembrandt.
 O criador da “Ronda da Noite” morreu pobre — como Mozart — há 350 anos,
 tendo sido enterrado numa campa emprestada da Westerkerk (Igreja 
Ocidental), em Amesterdão. Tinha 63 anos. Duas décadas depois, como era 
hábito para os desprovidos, a sepultura foi escavada e destruída. A sua 
arte, porém, continua a iluminar-nos.
 
 
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