terça-feira, 4 de maio de 2021

 

Julião Sarmento (1948-2021). Nos labirintos do Desejo: um obituário

Julião Sarmento

Na hora do seu desaparecimento, Julião Sarmento deixa uma obra imensa e diversificada pontuada por sucessivas inflexões que buscaram quase sempre o compasso com o tempo histórico. Olhando em retrospetiva, parece ter experimentado tudo: do filme à pintura, do som à escultura, passando pela fotografia, o desenho, o objeto, a instalação ou a performance

4 Maio 2021 9:47

Com o falecimento de Julião Sarmento na manhã desta terça-feira desaparece, o mais notório e persistente emblema de uma geração individualista e cosmopolita que, nos anos 80, foi capaz de trilhar os caminhos da internacionalização quando fazê-lo parecia uma quimera. Essa consciência, sua e de alguns outros companheiros de geração, supunha uma nova atitude na arte portuguesa, mais profissionalizada, mais consciente do ponto de partida periférico mas também menos complexada na sua atração pelos grandes centros. Mas se essas características ajudam a perceber Julião Sarmento e a sua afirmação como ícone maior da arte portuguesa contemporânea pouco explicam das razões da sua persistência como referência artística central do contexto português dos últimos 50 anos.

Na hora do seu desaparecimento, Julião Sarmento deixa uma obra imensa e diversificada pontuada por sucessivas inflexões que buscaram quase sempre o compasso com o tempo histórico. Olhando em retrospetiva, parece ter experimentado tudo: do filme à pintura, do som à escultura, passando pela fotografia, o desenho, o objeto, a instalação ou a performance. E, no entanto, mesmo no interior dessa diversidade e estilhaçamento estilístico amplamente cultivado, a grande maioria das obras eram imediatamente reconhecidas como suas. Para isso contribui a permanência de um conjunto de obsessões. A primeira delas é, sem dúvida, a dimensão erótica que Sarmento, na esteira de Bataille ou Buñuel, intuiu como um jogo de sombras permanente repleto de evidências mais opacas do que parecem e de opacidades que afinal se insinuam permanentemente.

A especificidade de Sarmento é, porém, a de ter comunicado o desejo (ou de ter comunicado a impossibilidade da sua tradução) através de um permanente cruzamento de imagens refratárias e incompletas, capazes de absorverem uma multiplicidade de conteúdos e referências e de ainda assim se manterem num estado de incompletude aberta e insinuante. O cinema, sobretudo o que enuncia o perigo, a expectativa e o desejo; a arquitetura que entrega o silêncio e a solidão mas também se constitui como uma forma de palco; ou a literatura, sobretudo a “maldita” do final do século XIX (de Sade ou Lautréamont) que adiciona uma impiedosa violência às imagens; ou a da fábula e dos contos de fadas que flirtam com a inocência, foram alimento recorrente dessa arte. Esses afluentes entram na pintura de Julião Sarmento como se aportassem um comboio que vemos da estação no seu momento de partida, deixando na memória um selo fantasmagórico mas persistente. Nesse sentido, a impermanência das imagens, a sua volatilidade e trânsito elétrico são o verdadeiro material desta obra, independentemente das vestes que foram assumindo.

Quando ocorre a revolução de abril, Julião tem 26 anos. Estudou arquitetura e pintura na faculdade de Belas Artes de Lisboa. No início dos anos 70 produz uma de forte presença da cor e da silhueta que gera imagens de uma sensualidade misteriosa. Mais tarde trabalhará na Secretaria de Estado da Cultura ao lado do amigo Fernando Calhau, com quem partilha um interesse pelas tendências minimalistas e conceptuais.

É nesse contexto que participa na Alternativa Zero, o evento organizado em 1977 por Ernesto de Sousa que, na Galeria Nacional de Arte Contemporânea, faz o balanço das atitudes de uma nova geração em torno de práticas artísticas desmaterializadas e democratizantes e gestos performativos e contaminações das artes visuais pela linguagem e pelo vídeo.

Ao lado de artistas mais velhos como Helena Almeida ou Alberto Carneiro, e de outros da sua geração, o jovem Julião está em sintonia com estas reconfigurações das práticas artísticas, constituindo um corpo de trabalho com características vincadamente experimentais com recurso a meios diversos como o texto, a fotografia, o vídeo e o som e onde representações elípticas ou mais abertas da pele, do sexo e do desejo se vislumbram já por entre os jogos conceptuais.

Depois das aventuras coletivistas e dos momentos associativos que caracterizaram o período efervescente da revolução de abril, os anos 80 impõem reativamente uma atitude dandy, uma valorização da singularidade e da pluralidade, e a abertura à arte e literatura anglo-saxónicas que substituem as suas congéneres francófonas como referência central da produção cultural portuguesa.

Julião Sarmento

Julião Sarmento

josé caria

É a década mundana do Frágil, das romarias à feira Arco em Madrid, da afirmação de um pequeno circuito galerístico e de um mercado de arte ainda incipiente.

Identificado com os ares que corriam de países como Itália, Alemanha ou os EUA, e acusando o cansaço com a frieza de algumas práticas conceptuais que dominaram a década anterior, Sarmento faz o seu “regresso à pintura” em tom neo-expressionista, uma viragem decisiva do seu programa artístico que o conduz à afirmação internacional. Nesses anos, participa nas edições de 1982 e 1987 da Documenta de Kassel, um dos mais respeitados encontros artísticos internacionais; expõe na Suíça, na Espanha, na Alemanha e em Itália e cria uma rede de contactos que inclui artistas como os espanhóis Cristina Iglesias e Juan Muñoz ou o influente curador Germano Celant, responsável pela revelação internacional da italiana arte povera, que havia participado nos debates pós-modernos em “Depois do modernismo”, o evento multidisciplinar organizado, em 1983, na SNBA, pelo galerista Luís Serpa e pelos artistas António Cerveira Pinto e Leonel Moura.

Nas pinturas da primeira metade da década as superfícies subdividem-se em planos, enunciando imagens fragmentárias que mais do que diálogos, estabelecem curto-circuitos entre si. As telas revelam cenas de intimidade que parecem retiradas de polaroids ou de frames cinematográficos que se conjugam com a mais variada informação como sinaléticas, plantas arquitetónicas, stills de filmes ou imagens de objetos a partir de uma lógica compositiva que transpõe a sucessão cinematográfica para a simultaneidade pictórica. Progressivamente, esta prática vai-se tornando mais árida e subordinada ao desenho, o que nos conduz às chamadas “pinturas brancas” dos anos 90, telas quase sempre de grande dimensão em que uma estrita economia de meios sustenta a teatralidade de grandes superfícies brancas texturadas. Uma figura feminina vestida de preto e sem cabeça domina muitas destas composições, reaparecendo também nas suas esculturas, mas por vezes o que se figura são apenas bocas, línguas, mãos, quadris, pescoços, fragmentos de corpos femininos, gestos sexuais ou violentos que parecem manter-se à tona um pouco depois de emergirem ou um pouco antes de se extinguirem como se Sarmento manipulasse o nosso voyeurismo.

Na viragem do século a parceria com a galerista Cristina Guerra assegura-lhe uma presença constante em exposições do mais diverso recorte curatorial que lhe permitem expor com artistas muito mais novos. Os trabalhos que Julião Sarmento tem apresentado nos últimos vinte anos não traem a diversidade que sempre caracterizou o seu percurso, mas tornam recorrentes práticas anteriormente menos exploradas, como a da escultura dominada pelos corpos femininos decepados ou pelas figuras encapuçadas que ele conduz à teatralidade da instalação; ou os vídeos que supõem uma dimensão performativa induzida.

Julião Sarmento

Julião Sarmento

tiago miranda

As últimas décadas ficam também marcadas por várias colaborações com outros artistas plásticos como a que ocorreu no CCB com Lawrence Weiner e John Baldessari, com curadoria de Delfim Sardo (“Drift, 2004), ou com artistas de outras áreas criativas como o músico Arto Lindsay que compôs uma banda sonora para o seu arquivo fotográfico pessoal; ou o cineasta Atom Egoyan, com quem criou a vídeo-instalação “Close” para a Bienal de Veneza de 2001, onde já havia sido o representante de Portugal em 1997.

Estes é também o tempo das visões retrospetivas totais da obra ou de exposições antológicas que circunscrevem aspetos ou períodos localizados. Em 1999/2000, o Museu Reina Sofia e o CAM apresentam “Flashback” uma recolha de trabalhos de diferentes tempos que revisita algumas das suas obsessões mais recorrentes (o desejo, o feminino, o círculo afetivo, a arquitetura). Em 2002, Pedro Lapa traz ao Museu do Chiado os “Trabalhos dos Anos 70” lançando luz sobre o seu período inicial. Foi uma oportunidade de revelar de modo sistemático uma produção diversa da que lhe trouxe ventura crítica nos anos 80; mas significou também a possibilidade de os jovens artistas e críticos dos anos 90, que quiseram distanciar-se da arte da década anterior, se reconciliarem com a matriz conceptual da obra de Sarmento. Em 2018, também a sua obra em desenho, que estranhamente nunca havia sido mostrada em conjunto, é exibida na Fundação Carmona e Costa.

Mas é em Serralves, em 2012, que se mostra a sua maior retrospetiva de sempre numa exposição intitulada “Noites Brancas”, que reúne cerca de 160 obras e ocupa todos os espaços expositivos da casa e do Museu do Porto, numa impressionante manifestação da sua presença criativa e influência institucional.

Representado em algumas das mais importantes coleções do mundo (do Reina Sofia ao MOMA; do Guggenheim à Tate) e em todas as relevantes em Portugal, Sarmento haveria de mostrar no MAAT, em 2015, a sua coleção pessoal, numa viagem que define um círculo afetivo mas também o seu gosto pessoal.

Publicado no ano passado, o seu último livro “Café Bissau”, com edição de André Príncipe e José Pedro Cortes, reúne fotografias tiradas entre 1964 e 2017. Como sempre, trata-se de revolver a memória, numa revisitação de lugares, pessoas e temperaturas, que funciona como uma cápsula de tempo. E também este último objeto nos devolve ao paradoxo essencial e produtivamente irresolúvel da sua obra. Com Sarmento, pudemos sempre contar com uma abertura camaleónica que o leva ao encontro de um novo interlocutor ou da exploração de um diferente veículo artístico, mas isso é sempre um meio de refazer a sua própria genealogia afetiva ou de reorganizar fantasmas antigos numa labiríntica cartografia do desejo.

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