sábado, 18 de outubro de 2025

Arte Naif

Laura Aidar
Laura Aidar
Arte-educadora, fotógrafa e artista visual

Arte naïf é um termo usado para designar um tipo de arte popular e espontânea.

A palavra naïf é uma palavra francesa que tem como significado algo que é "ingênuo ou inocente".

Possui características baseadas na simplificação dos elementos e costuma exibir grande quantidade de cores, valorizando a representação de temas cotidianos e manifestações culturais do povo.

Geralmente é produzida por artistas autodidatas, os seja, que não possuem conhecimento formal e técnico de arte, mas que exibem produções em que outros princípios são considerados, como a autenticidade.

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Plano de Estudos Semanal

História da arte naïf

O sonho (1910), do francês Henri Rousseau é um exemplo de pintura naïf
O sonho (1910), do francês Henri Rousseau é um exemplo de pintura naïf

A arte naïf costuma ser mais associada à pintura e foi instituída no século XIX, apesar de seus atributos estarem presentes nas pinturas rupestres do paleolítico.

O pintor francês Henri Rousseau (1844-1910) é considerado o precursor do estilo e foi reconhecido dessa forma quando expôs suas obras no “Salão dos Independentes” na França, em 1886.

A tela Um dia de Carnaval (1886), chamou a atenção de vários artistas modernistas da época, dentre eles Pablo Picasso (1881-1973), Léger (1881-1955) e também representantes do surrealismo, como Joan Miró.

A tela Um dia de Carnaval, de Henri Rousseau, foi exibida no 'Salão dos Independentes', em 1886
A tela Um dia de Carnaval, de Henri Rousseau, foi exibida no "Salão dos Independentes", em 1886

Esta expressão artística, muitas vezes chamada de arte primitiva moderna, é permeada por imagens do cotidiano, retratados de modo a lembrar desenhos infantis, dada a espontaneidade e pureza, o que remete a uma "aura" de ingenuidade.

Lembre-se que essas produções são realizadas por artistas independentes e sem formação sistemática. Tais artistas geralmente dominam técnicas que lhe permitem total liberdade de expressão, onde o informalismo acadêmico é característica marcante.

Dessa maneira, eles renunciam às regras instituídas para a pintura. Isso pode ocorrer por que não tiveram acesso a elas e resolveram dificuldades técnicas sem o auxílio daquelas normas.

Ou ainda, atualmente, simplesmente porque artistas contemporâneos apresentam despojamento da forma e da técnica academicista, o que os tornam mais próximos da linguagem naïf.

Essa liberdade artística é notada na maneira como são utilizadas as cores nas composições e na dimensão onírica que é projetada em muitos trabalhos.

Desse modo, a arte naïf pode ser considerada como uma corrente artística com plena liberdade estética, por estar livre das convenções acadêmicas.

Apesar do direcionamento estético definido, esse desafio à norma acadêmica, a princípio, não foi intencional nem comercial. Portanto, não é recomendável enquadrar as criações naïf como sendo de natureza modernista ou popular.

Ainda assim, esse estilo criativo influenciou e deixou-se influenciar pelas tendências mais eruditas, permitindo à arte contemporânea novas formas de expressão, tendo em vista que vários pintores com sólida formação acadêmica usaram procedimentos da arte naïf em suas criações.

Características da arte naïf

A arte naïf é uma expressão tipicamente regional e assume as características de cada localidade. Entretanto, é possível perceber algumas características comuns nesse estilo artístico, a saber:

  • Bidimensionalidade - inexistência de perspectiva;
  • Uso frequente de cores vibrantes;
  • Preferência por temas alegres;
  • Espontaneidade;
  • Traços figurativos;
  • Valorização da simetria;
  • Tendência à idealização da natureza.

Representantes da arte naïf no mundo

Henri Rousseau

À esquerda, autorretrato de Rousseau de 1890. À direita, Mulher de vermelho na floresta (1907)
À esquerda, autorretrato de Rousseau de 1890. À direita, Mulher de vermelho na floresta (1907)

Henri Rousseau foi um artista francês que nasceu em 1844. Sem formação acadêmica, o pintor foi autodidata teve sua produção julgada na época, pois segundo os críticos, eram obras consideradas "infantis".

Entretanto, ao final de sua vida, teve o reconhecimento das vanguardas artísticas europeias. Ele é considerado o precursor da arte naïf.

Camille Bombois

Antes de entrar no picadeiro (1935), de Camille Bombois
Antes de entrar no picadeiro (1935), de Camille Bombois

Camille Bombois nasceu em 1883, na França. Foi um pintor de origem humilde que trabalhou na lavoura na adolescência e nas horas livres gostava de pintar telas.

Tinha demasiado apreço em representar cenas de circo e, mais tarde, ingressou em um circo itinerante.

Seu trabalho foi comparado ao de Henri Rousseau, devido ao caráter ingênuo de suas pinceladas.

Séraphine Louis

Retrato de Séraphine Louis. À direita, a obra Árvore do Paraíso (1930)
Retrato de Séraphine Louis. À direita, a obra Árvore do Paraíso (1930)


Séraphine Louis, também chamada de Séraphine de Senlis, foi uma artista francesa. Ela nasceu em 1864 e vinha de uma família pobre. Órfã de pai e mãe, foi criada pela irmã mais velha.

Não teve formação acadêmica, mas apreciava pintar. Encontrou na natureza e na arte uma forma de deixar sua existência mais feliz.

Pilar Sala

Quadro Avó e girafa, da artista argentina Pilar Sala
Quadro Avó e girafa, da artista argentina Pilar Sala

A artista argentina Pilar Sala é uma pintora contemporânea que utiliza características da arte naïf para produzir telas carregadas de elementos líricos e fantásticos.

Representantes da arte naïf no Brasil

O Brasil tem diversos artistas populares que possuem produções artísticas baseadas nas características da arte naïf. Dentre eles, alguns nomes se destacam, como:

Djanira

À esquerda, tela Vendedora de flores (1947). À direita, Costureira (1951). Ambas produções de Djanira
À esquerda, tela Vendedora de flores (1947). À direita, Costureira (1951). Ambas produções de Djanira

Djanira da Motta e Silva nasceu no interior de São Paulo em 1914. Foi uma importante artista da primeira metade do século XX e sua obra mescla religiosidade, paisagens brasileiras e o cotidiano das pessoas comuns.

Maria Auxiliadora

À esquerda, a tela A preparação das meninas (1972). À direita, retrato da artista
À esquerda, a tela A preparação das meninas (1972). À direita, retrato da artista

Maria Auxiliadora é uma artista nascida em 1938 em Minas Gerais. Foi pintora autodidata e em 1968 integra o grupo artístico de Solano Trindade, em Embu das Artes.

Sua obra é carregada de vitalidade, poesia e cor. A artista conseguiu mesclar elementos da realidade com o universo dos sonhos em uma produção fortemente marcada pela representação afro-brasileira.

Mestre Vitalino

Escultura em argila de Mestre Vitalino exibindo uma família nordestina de retirantes
Escultura em argila de Mestre Vitalino exibindo uma família nordestina de retirantes

Mestre Vitalino nasceu em 1909 em Pernambuco. Ainda quando criança começou a modelar figuras em cerâmica com o barro que sua mãe utilizava para fazer utensílios. Seus pais eram lavradores.

Foi músico e ceramista e sua obra representa sobretudo o povo nordestino.

Quer conhecer sobre outra vertente artística bem diferente, mas que também se inspirou em temas do universo popular? Leia: Realismo na Arte.


Heitor dos Prazeres

O artista Heitor dos Prazeres em frente a uma obra. À esquerda, tela sem título, pintada em tinta a óleo
O artista Heitor dos Prazeres em frente a uma obra. À esquerda, tela sem título, pintada em tinta a óleo

Heitor dos Prazeres nasceu no Rio de Janeiro em 1898. Foi sambista, e em 1937 começa a dedicar-se também à pintura. Sua obra é fortemente marcada pela valorização da cultura popular.
Para saber mais sobre outro tipo de pintura, que também não se limita à conceitos acadêmicos, leia sobre Grafite.

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  • terça-feira, 14 de outubro de 2025

    Este quadro renascentista é dos que mais me impressiona por vários motivos : não dá importância à perspectiva e ao fundo, tudo é grande plano cinematográfico; a nossa atenção é mais dirigida para a mão sobre o mármore do que sobre o seu rosto; apsar desse foco todo o quadro é uma unidade na qual tudo respira melancolia, cinzas como aquele cáeu cinzento; exprime a autonomia do artista que assina despudoradamente no mãrmore sob a mão sagrada; rompe com a pintura bizantina mas não obedece a normas , algumas dasquais iriam tornar-se imperativas no Renascimento tardio; exprime, a meu ver, a autonomia do indivíduo na emergência da Burguesia europeia, todo o conteúdo fala de indivíduos concretos, terrenos, pagãos, e não se vê símboloias etéreas; e é um quadro proto-burguês, ou proto-cartesiano, porque é o "eu" de um homem sacralizado,, que, embora ressuscitado. está definitivamente e eternamente morto.

     

    Pietà (Giovanni Bellini Brera)

    pintura a têmpera sobre painel de Giovanni Bellini na Galeria de Arte de Brera 1465-1470

    A Pietà (ou Cristo Morto sustentado por Maria e João ) é uma pintura a têmpera sobre painel (86x107 cm) de Giovanni Bellini , datável de aproximadamente 1465-1470 e conservada na Pinacoteca di Brera em Milão .

    Compaixão

    Autor João Bellini
    Data 1465 - 1470
    Técnica têmpera sobre painel
    Dimensões 86×107 cm
    Localização Galeria de Arte de Brera , Milão


    Descrição e estilo

    O corpo de Cristo morto é sustentado pela Virgem (à esquerda) e por São João à direita, com uma facilidade evidente que revela uma certa leveza. A mão de Jesus repousa em primeiro plano sobre uma laje de mármore com a assinatura do artista e uma frase retirada do livro de Elegias de Propércio ( HAEC FERE QVVM GEMITVS TVRGENTIA LVMINA PROMANT / BELLINI POTERAT FLERE IOANNIS OPVS , "Estes olhos inchados quase gemerão, esta obra de Giovanni Bellini poderá derramar lágrimas"), segundo um esquema derivado da pintura flamenga , já utilizado por Mantegna e pelos artistas paduanos . Este artifício separa o mundo real do espectador do mundo pintado, mas ao atravessar esta fronteira, neste caso operada pela mão, tenta-se uma fusão ilusória entre os dois mundos.

    A mão e a assinatura

    A incisividade das linhas de contorno e dos elementos gráficos (nos cabelos de João pintados um a um ou na veia pulsante do braço de Cristo) ainda remetem para a lição de Mantegna, mas o uso da cor e da luz é muito diferente do do seu cunhado. Os tons são de facto suavizados e tentam transmitir um efeito de iluminação natural, de um dia claro ao ar livre, frio e metálico como um amanhecer de renascimento, que sustenta a sensação angustiada da cena, atuando em certo sentido como uma caixa de ressonância para as emoções humanas [ 2 ] . A luz mistura-se com as cores, suavizando a representação, graças à aplicação particular da têmpera em traços muito finos e fechados.

    Em vez de se concentrar no espaço perspectivo , Bellini parece mais interessado em retratar a humanidade sofredora dos protagonistas, inspirado no exemplo de Rogier van der Weyden , num estilo que mais tarde se tornou um dos traços mais característicos da sua arte. Os volumes escultóricos das figuras, destacando-se isolados contra o céu limpo, amplificam o drama, que se condensa no diálogo silencioso entre mãe e filho, enquanto o olhar de São João revela uma serena consternação. A troca de emoções reflete-se então na hábil interação das mãos, com uma sensação de dor e amargura.

    Notas

    1. ^ Armando Besio, Giovanni Bellini. Maria chora verdadeiramente e o tempo pára na mais bela Pietà , La Repubblica , 1 de junho de 2014, pp.
    2. ^ De Vecchi-Cerchiari, cit., p. 130.

    Bibliografia

    • Vários Autores, Brera, Guia da Galeria de Arte , Electa, Milão 2004. ISBN 978-88-370-2835-0
    • Mariolina Olivari, Giovanni Bellini , in AA.VV., Pintores do Renascimento , Scala, Florença 2007. ISBN 88-8117-099-X
    • Pierluigi De Vecchi e Elda Cerchiari, The Times of Art , Volume 2, Bompiani, Milão 1999. ISBN 88-451-7212-0

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    sexta-feira, 22 de agosto de 2025

    Oliver Messiaen - Quarteto para o fim dos tempos - QuartaD

     O "Quarteto para o fim dos tempos" (Quatuor pour la fin du temps) é uma obra composta por Olivier Messiaen em 1941, quando estava preso pelos nazistas, para ser tocada por um quarteto de piano, clarinete, violino e violoncelo. Composta em oito movimentos e inspirada pelo Apocalipse, a peça foi estreada no campo de concentração de Görlitz. 


    Praesens - Quarteto para o fim dos tempos

    TURNER, o pintor proto modernista

     

  • Ficheiro:Joseph Mallord William Turner - Snow Storm - Steam-Boat off a Harbour's Mouth - WGA23178.jpg
  • Criação: 1842
  • Harbour's Mouth, (1842)

    sábado, 9 de agosto de 2025

     

    Quarteto do fim dos tempos

     

    Não sabia o que era aquilo. Mas sabia que já estivera ali. Em todas as fotos que publicava no Instagram escrevia uma legenda sempre a mesma : Eu estive aqui. Náo reconheceu a avenida porque encontrava-se coberta de escombros de casas. Um vento do inferno passara por ali. E, no entanto, ele sentia que aquele lugar era idêntico a outros que já visitara, e dos quais publicara as suas imagens e que sob elas escrevera : Estive aqui. Procurou um supermercado para comprar alguma coisa para comer, apetecia-lhe uma bifana, não encontrou nenhum em cima ou por baixo dos escombros. Restaurantes ou Cafés nem sombra deles. Restavam deles sob montes de tijolos, uns dísticos com os seus nomes. E era assim por todas as ruas, as quais, de resto, mal se distinguiam. Pisou sem o ter visto um homem que já estava mais que morto e perguntou a outro que se arrastava numas chinelos onde se podia comer e o indivíduo apontou para lá de uma paredão meio derrubado. Moisés entendeu que para lá haveria onde comer. E foi. Rodeou a parede gigante meio derrubada , pisou outro corpo já tão morto que nem se queixou, observou mais uns dísticos que identificavam  ruínas de lojas de roupas, de sapatos, de bicicletas... Foi então que viu a multidão a correr por arrasada avenida abaixo, o que fora antes uma avenida, em direção a um ponto indefinido. Deixou a multidão passar e foi atrás dela. Eram tantos - crianças, jovens que já não eram crianças, mulheres velhas e novas, homens de todas as idades - a preencher todo o espaço, gritando enlouquecidas, que desistiu, deu meia volta e continuou o seu caminho sem destino e sem pão. Era, parecia-lhe, um caminho muito longo que iniciara há muito tempo e desconhecia quando terminaria. Já subira a altas montanhas nevadas e atravessara vales estreitos como gargalos de garrafa, e não encontrara ninguém que lhe fornecesse uma meta. O que num dia tinha como certo, esquecia-se no dia seguinte e tudo retomava a sua repetição. Como num círculo tudo regressava ao ponto de partida. Havia à sua frente um horizonte que se afastava a cada passo que ele dava. Na verdade não estava sozinho, via gentes dentro de enormes camiões, dos automóveis utilitários, de comboios cada vez mais rápidos, mas não vislumbrara um corpo que materializasse uma ideia, ou uma força social que realizasse a força transcendente do ideal. Dado que não se lembrava de nada, admitiu a hipótese de se encontrar sob o efeito de ressacas sucessivas. Quiçá fosse alcoólico e que, portanto, não era real o que via, a caminhada, a vida, mas somente os delírios de um doente. Para tirar dúvidas beliscava-se, molhava o rosto frequentemente nas fontes que encontrava à beira das estradas , chegou ao ponto drástico de se colocar à frente de um automóvel que circulava : não foi atropelado por por causa daqueles reflexos a que chamamos milagres. Caminhava como aquelas aves que atravessam metade do mundo para passarem o verão na outra metade. Sim. E quando chegasse a velhice? Ou uma doença a necessitar cuidados? Atravessara, julgava ele, os lugares mais inóspitos e nunca perdera o fôlego. Postas estas circunstâncias, começou a suspeitar que era um nativo doutro planeta. Aliás, a bem dizer, não podia ser ressaca alguma, porque não se recordava de bebedeira nenhuma. Perguntou-se se o destino da sua caminhada sem metas definidas não seria exatamente reencontrar o sítio onde descera do firmamento. Não se lembrava do desembarque, nem do dia e ano, não guardava recordação alguma, um fragmento fugaz que fosse, de alguma nave invulgar. O que ele sentia, e unicamente suspeitava, é que não era dali. Não podia ser dali. Não porque não fossem encantadoras muitas das planícies floridas que calcara e fantásticas muitas das montanhas que escalara, as lagoas com nenúfares, os rios sulcados por canoas primitivas mas eficientes, ribeiras com raparigas a enxaguarem os peitos tesos, bandos de crianças a correrem felizes atrás de uma bola de trapos, choupanas de barro seco e palha nos telhados com velhos muito escuros e muito velhos sentados no chão à porta, mulheres de saiotes subidos a guiarem búfalos em campos de arroz. Sim. Sentia, porém, uma espécie de nostalgia, uma saudade, como se tivesse perdido alguma coisa preciosa, talvez um beijo, um colo e um abraço, um lugar. Sem nenhuma memória do que fosse.. Se ele se recordasse, saberia que os nativos do seu planeta não possuíam memória de longa duração, somente de curta duração. Isto é, viam uma coisa bonita ou feia e esqueciam-na escassos minutos depois. Certo dia fez um amigo ( não se recordava já) e esse amigo ao fim de algum tempo disse-lhe: “Ouve lá, acho que tu estás sempre ressacado!”. “Quê?”, retorquiu ele a começar a esquecer-se do significado da palavra. Na verdade até que não bebia demasiado. Doutra vez fez uma amiga que gostou muito dele, até lhe dava beijinhos na ponta do nariz e mordiscadelas nas orelhas e fazia-lhe festas no cabelo que ele raramente cortava ; contudo esqueceu-se dela, ou melhor, na realidade esquecia-se dela passados uns minutos, talvez uma hora, depois relembrava-se, ou ela relembrava-o com novas mordiscadelas, até que se cansou dos esquecimentos dele e descobriu rapidamente um senhor que nunca se esquecia dela. Pelo menos foi a explicação que ela deu.

       Conhecera nas suas viagens exploratórias lugares inesquecíveis (não para ele) : vales atapetados de relva muito verde, pincelada com o vermelho das papoilas e o azul das malvas, nomes que teria gostado de decorar, mas, infelizmente. esquecia de um momento para o outro. Fora desses lugares sublimes, porém, cruzara-se a miúde com terrestres ( admitindo que ele próprio o não fosse) a matarem-se uns aos outros, envolvidos em zaragatas por motivos fúteis ( para ele que esquecia tudo). Passou ao pé de uma cidade onde existia uma praça que ninguém atravessava a menos que quisesse levar um tiro de uns tipos armados que vigiavam escondidos nas colinas sobranceiras com uns binóculos ao longe (felizmente para ele esqueceu-se depressa daquela estupidez que se poderia converter para ele num tremendo pesadelo). Vira igualmente outros atos de igual estupidez : belas e grandes cidades cujos habitantes foram chacinados com bombas sem culpa formada, cidades com nomes esquisitos como Dresden, Kiev e Estalinegrado na mesma época, Hiroshima e Nagasaki e Seul. Se ele se lembrasse, lembrar-se-ia de dezenas e dezenas de aldeias e cidades incineradas que vira ao passar ao longe, por hordas sanguinárias de etnias, tribos e impérios. Reteria na memória o caos. O horror. Assistia hoje, para amanhã despertar de uma noite agitada completamente esquecido do que vira. Por isso sobrevivia. Por isso caminhava em busca do que esquecera.

      Não possuindo bússola, nem memórias, guiava-se pelo movimento aparente do sol e por determinadas estrelas das quais ele se esquecia de dia para se lembrar de novo à noite. E , com a saudade de palavras que não dizia, de atitudes que não tomava, adormecia de mansinho, nem triste, nem contente. Esquecia-se depressa do que o contentava e do que o entristecia.

       Certo dia cansou-se do que via ( foi naquele dia em que viu uma cidade cheia de gente a ser bombardeada com canhões no solo e nos céus, com máquinas aterradoras a esmagar cadáveres naquela faixa de terra a que ouviu chamar de Gaza), deitou-se na areia húmida da praia ao pé de uma montanha de cadáveres de crianças, num sítio onde o sangue escorria para o mar. E adormeceu. Como a sua memoria era curta, esqueceu-se de acordar.

    ----------------------Nozes Pires --------------2025

    quinta-feira, 7 de agosto de 2025

     

    Estrangeiros na terra do amor: sobre “Too Much”, nova série de Lena Dunham

    Imagem: Divulgação

    Por Cauana Mestre

    Lena Dunham, a gênia por trás de Girls — que se tornou ícone da geração millenial — decide travar guerra contra o declínio da comédia romântica, provando que romance e conservadorismo são coisas diferentes (embora a gente os tenha misturado por muito tempo). Assim nasce a série Too Much, disponível na Netflix.

    Imagem: Divulgação

    A protagonista Jess (Megan Stalter) decide deixar Nova Iorque depois de ser abandonada pelo namorado, que a manipula como se sua demanda de amor fosse uma patologia. Diferentemente das personagens de Girls, Jess é bem-sucedida e adora o seu trabalho como produtora de comerciais de TV. Qualquer desajuste no campo profissional, por maior que seja, é elaborado e resolvido enquanto, no terreno do amor, as coisas ficam mais difíceis. A série reflete bem certos impasses dos jovens adultos hoje, que sofreram a pressão da necessidade de uma carreira sólida e de uma vida financeira estável sem ter a menor ideia de como conciliar o sucesso com o amor ou mesmo que condições podemos impor ao sucesso.

    Assim que chega em Londres para assumir um novo trabalho, Jess conhece Felix (Will Sharpe), idealista músico de bar que tenta reparar a vida depois de um longo período de abuso de drogas. O óbvio a dizer aqui é que os dois são psiquicamente quebrados (e quem não é?), o que, para Lena Dunham, é condição criativa. Mas o que interessa mesmo é observar como as coordenadas da fratura subjetiva mudam de acordo com as demandas culturais do tempo em que vivemos.

    Imagem: Divulgação

    Em outras palavras: como, apesar de termos alcançado considerável liberdade sexual, pluralidade de experiência e uma infinidade de nomeações para as diversas formas de amar, alguns sofrimentos permanecem quase os mesmos, ainda que mudem de roupa.

    Duhanm continua explorando as famílias desfuncionais (e que família não é?); a efetividade sempre atualizada dos traumas passados; o deslocamento social e político do mundo polarizado; a dificuldade na dissolução dos ideais que paralisam; a busca do amor como fonte de salvação e sofrimento. Mas agora parece haver maior naturalidade, menos truncamento nas experiências, o que torna as perguntas sobre o amor mais consentidas.

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    Afinal, se há uma coisa que ganhamos desde 2017 — ano em que estreou a temporada final de Girls — foi a capacidade de legitimar nossas questões sobre o amor, e a confissão de que não importa em que tempo estejamos, queremos ser amados e protegidos do desamparo.

    Enquanto a série Girls precisava ampliar o debate sobre sexo (quem não se lembra da icônica cena entre Marnie e Desi, interpretados por Allison Willians e Ebon Moss-Bachrach?), Too Much se dedica a explorar o amor — e talvez esse seja o traço disruptivo nos tempos atuais.

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    Jess e Felix formam um casal improvável e cheio de furos (e que casal não é?), mas, justamente por isso, cativante. A loucura de cada um não fecha a loucura do outro, mas acolhe e diverte. Sentimos vergonha alheia ao mesmo tempo em que os amamos, pois sabemos que, no fundo, somos todos estrangeiros na terra do amor, forasteiros dentro das nossas próprias fantasias de final feliz: ele não existe, é claro, mas essa descoberta pode ser uma delícia.


    Sobre o amor, de Leandro Konder
    O amor através dos olhos dos grandes pensadores e escritores. O filósofo brasileiro explora as múltiplas facetas desse sentimento, desafiando convenções e expondo suas complexidades com erudição, clareza e humor fino.


    ***
    Cauana Mestre é psicanalista, mestre em Literatura pela UFPR.