sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Oliver Messiaen - Quarteto para o fim dos tempos - QuartaD

 O "Quarteto para o fim dos tempos" (Quatuor pour la fin du temps) é uma obra composta por Olivier Messiaen em 1941, quando estava preso pelos nazistas, para ser tocada por um quarteto de piano, clarinete, violino e violoncelo. Composta em oito movimentos e inspirada pelo Apocalipse, a peça foi estreada no campo de concentração de Görlitz. 


Praesens - Quarteto para o fim dos tempos

TURNER, o pintor proto modernista

 

  • Ficheiro:Joseph Mallord William Turner - Snow Storm - Steam-Boat off a Harbour's Mouth - WGA23178.jpg
  • Criação: 1842
  • Harbour's Mouth, (1842)

    sábado, 9 de agosto de 2025

     

    Quarteto do fim dos tempos

     

    Não sabia o que era aquilo. Mas sabia que já estivera ali. Em todas as fotos que publicava no Instagram escrevia uma legenda sempre a mesma : Eu estive aqui. Náo reconheceu a avenida porque encontrava-se coberta de escombros de casas. Um vento do inferno passara por ali. E, no entanto, ele sentia que aquele lugar era idêntico a outros que já visitara, e dos quais publicara as suas imagens e que sob elas escrevera : Estive aqui. Procurou um supermercado para comprar alguma coisa para comer, apetecia-lhe uma bifana, não encontrou nenhum em cima ou por baixo dos escombros. Restaurantes ou Cafés nem sombra deles. Restavam deles sob montes de tijolos, uns dísticos com os seus nomes. E era assim por todas as ruas, as quais, de resto, mal se distinguiam. Pisou sem o ter visto um homem que já estava mais que morto e perguntou a outro que se arrastava numas chinelos onde se podia comer e o indivíduo apontou para lá de uma paredão meio derrubado. Moisés entendeu que para lá haveria onde comer. E foi. Rodeou a parede gigante meio derrubada , pisou outro corpo já tão morto que nem se queixou, observou mais uns dísticos que identificavam  ruínas de lojas de roupas, de sapatos, de bicicletas... Foi então que viu a multidão a correr por arrasada avenida abaixo, o que fora antes uma avenida, em direção a um ponto indefinido. Deixou a multidão passar e foi atrás dela. Eram tantos - crianças, jovens que já não eram crianças, mulheres velhas e novas, homens de todas as idades - a preencher todo o espaço, gritando enlouquecidas, que desistiu, deu meia volta e continuou o seu caminho sem destino e sem pão. Era, parecia-lhe, um caminho muito longo que iniciara há muito tempo e desconhecia quando terminaria. Já subira a altas montanhas nevadas e atravessara vales estreitos como gargalos de garrafa, e não encontrara ninguém que lhe fornecesse uma meta. O que num dia tinha como certo, esquecia-se no dia seguinte e tudo retomava a sua repetição. Como num círculo tudo regressava ao ponto de partida. Havia à sua frente um horizonte que se afastava a cada passo que ele dava. Na verdade não estava sozinho, via gentes dentro de enormes camiões, dos automóveis utilitários, de comboios cada vez mais rápidos, mas não vislumbrara um corpo que materializasse uma ideia, ou uma força social que realizasse a força transcendente do ideal. Dado que não se lembrava de nada, admitiu a hipótese de se encontrar sob o efeito de ressacas sucessivas. Quiçá fosse alcoólico e que, portanto, não era real o que via, a caminhada, a vida, mas somente os delírios de um doente. Para tirar dúvidas beliscava-se, molhava o rosto frequentemente nas fontes que encontrava à beira das estradas , chegou ao ponto drástico de se colocar à frente de um automóvel que circulava : não foi atropelado por por causa daqueles reflexos a que chamamos milagres. Caminhava como aquelas aves que atravessam metade do mundo para passarem o verão na outra metade. Sim. E quando chegasse a velhice? Ou uma doença a necessitar cuidados? Atravessara, julgava ele, os lugares mais inóspitos e nunca perdera o fôlego. Postas estas circunstâncias, começou a suspeitar que era um nativo doutro planeta. Aliás, a bem dizer, não podia ser ressaca alguma, porque não se recordava de bebedeira nenhuma. Perguntou-se se o destino da sua caminhada sem metas definidas não seria exatamente reencontrar o sítio onde descera do firmamento. Não se lembrava do desembarque, nem do dia e ano, não guardava recordação alguma, um fragmento fugaz que fosse, de alguma nave invulgar. O que ele sentia, e unicamente suspeitava, é que não era dali. Não podia ser dali. Não porque não fossem encantadoras muitas das planícies floridas que calcara e fantásticas muitas das montanhas que escalara, as lagoas com nenúfares, os rios sulcados por canoas primitivas mas eficientes, ribeiras com raparigas a enxaguarem os peitos tesos, bandos de crianças a correrem felizes atrás de uma bola de trapos, choupanas de barro seco e palha nos telhados com velhos muito escuros e muito velhos sentados no chão à porta, mulheres de saiotes subidos a guiarem búfalos em campos de arroz. Sim. Sentia, porém, uma espécie de nostalgia, uma saudade, como se tivesse perdido alguma coisa preciosa, talvez um beijo, um colo e um abraço, um lugar. Sem nenhuma memória do que fosse.. Se ele se recordasse, saberia que os nativos do seu planeta não possuíam memória de longa duração, somente de curta duração. Isto é, viam uma coisa bonita ou feia e esqueciam-na escassos minutos depois. Certo dia fez um amigo ( não se recordava já) e esse amigo ao fim de algum tempo disse-lhe: “Ouve lá, acho que tu estás sempre ressacado!”. “Quê?”, retorquiu ele a começar a esquecer-se do significado da palavra. Na verdade até que não bebia demasiado. Doutra vez fez uma amiga que gostou muito dele, até lhe dava beijinhos na ponta do nariz e mordiscadelas nas orelhas e fazia-lhe festas no cabelo que ele raramente cortava ; contudo esqueceu-se dela, ou melhor, na realidade esquecia-se dela passados uns minutos, talvez uma hora, depois relembrava-se, ou ela relembrava-o com novas mordiscadelas, até que se cansou dos esquecimentos dele e descobriu rapidamente um senhor que nunca se esquecia dela. Pelo menos foi a explicação que ela deu.

       Conhecera nas suas viagens exploratórias lugares inesquecíveis (não para ele) : vales atapetados de relva muito verde, pincelada com o vermelho das papoilas e o azul das malvas, nomes que teria gostado de decorar, mas, infelizmente. esquecia de um momento para o outro. Fora desses lugares sublimes, porém, cruzara-se a miúde com terrestres ( admitindo que ele próprio o não fosse) a matarem-se uns aos outros, envolvidos em zaragatas por motivos fúteis ( para ele que esquecia tudo). Passou ao pé de uma cidade onde existia uma praça que ninguém atravessava a menos que quisesse levar um tiro de uns tipos armados que vigiavam escondidos nas colinas sobranceiras com uns binóculos ao longe (felizmente para ele esqueceu-se depressa daquela estupidez que se poderia converter para ele num tremendo pesadelo). Vira igualmente outros atos de igual estupidez : belas e grandes cidades cujos habitantes foram chacinados com bombas sem culpa formada, cidades com nomes esquisitos como Dresden, Kiev e Estalinegrado na mesma época, Hiroshima e Nagasaki e Seul. Se ele se lembrasse, lembrar-se-ia de dezenas e dezenas de aldeias e cidades incineradas que vira ao passar ao longe, por hordas sanguinárias de etnias, tribos e impérios. Reteria na memória o caos. O horror. Assistia hoje, para amanhã despertar de uma noite agitada completamente esquecido do que vira. Por isso sobrevivia. Por isso caminhava em busca do que esquecera.

      Não possuindo bússola, nem memórias, guiava-se pelo movimento aparente do sol e por determinadas estrelas das quais ele se esquecia de dia para se lembrar de novo à noite. E , com a saudade de palavras que não dizia, de atitudes que não tomava, adormecia de mansinho, nem triste, nem contente. Esquecia-se depressa do que o contentava e do que o entristecia.

       Certo dia cansou-se do que via ( foi naquele dia em que viu uma cidade cheia de gente a ser bombardeada com canhões no solo e nos céus, com máquinas aterradoras a esmagar cadáveres naquela faixa de terra a que ouviu chamar de Gaza), deitou-se na areia húmida da praia ao pé de uma montanha de cadáveres de crianças, num sítio onde o sangue escorria para o mar. E adormeceu. Como a sua memoria era curta, esqueceu-se de acordar.

    ----------------------Nozes Pires --------------2025

    quinta-feira, 7 de agosto de 2025

     

    Estrangeiros na terra do amor: sobre “Too Much”, nova série de Lena Dunham

    Imagem: Divulgação

    Por Cauana Mestre

    Lena Dunham, a gênia por trás de Girls — que se tornou ícone da geração millenial — decide travar guerra contra o declínio da comédia romântica, provando que romance e conservadorismo são coisas diferentes (embora a gente os tenha misturado por muito tempo). Assim nasce a série Too Much, disponível na Netflix.

    Imagem: Divulgação

    A protagonista Jess (Megan Stalter) decide deixar Nova Iorque depois de ser abandonada pelo namorado, que a manipula como se sua demanda de amor fosse uma patologia. Diferentemente das personagens de Girls, Jess é bem-sucedida e adora o seu trabalho como produtora de comerciais de TV. Qualquer desajuste no campo profissional, por maior que seja, é elaborado e resolvido enquanto, no terreno do amor, as coisas ficam mais difíceis. A série reflete bem certos impasses dos jovens adultos hoje, que sofreram a pressão da necessidade de uma carreira sólida e de uma vida financeira estável sem ter a menor ideia de como conciliar o sucesso com o amor ou mesmo que condições podemos impor ao sucesso.

    Assim que chega em Londres para assumir um novo trabalho, Jess conhece Felix (Will Sharpe), idealista músico de bar que tenta reparar a vida depois de um longo período de abuso de drogas. O óbvio a dizer aqui é que os dois são psiquicamente quebrados (e quem não é?), o que, para Lena Dunham, é condição criativa. Mas o que interessa mesmo é observar como as coordenadas da fratura subjetiva mudam de acordo com as demandas culturais do tempo em que vivemos.

    Imagem: Divulgação

    Em outras palavras: como, apesar de termos alcançado considerável liberdade sexual, pluralidade de experiência e uma infinidade de nomeações para as diversas formas de amar, alguns sofrimentos permanecem quase os mesmos, ainda que mudem de roupa.

    Duhanm continua explorando as famílias desfuncionais (e que família não é?); a efetividade sempre atualizada dos traumas passados; o deslocamento social e político do mundo polarizado; a dificuldade na dissolução dos ideais que paralisam; a busca do amor como fonte de salvação e sofrimento. Mas agora parece haver maior naturalidade, menos truncamento nas experiências, o que torna as perguntas sobre o amor mais consentidas.

    Imagem: Divulgação

    Afinal, se há uma coisa que ganhamos desde 2017 — ano em que estreou a temporada final de Girls — foi a capacidade de legitimar nossas questões sobre o amor, e a confissão de que não importa em que tempo estejamos, queremos ser amados e protegidos do desamparo.

    Enquanto a série Girls precisava ampliar o debate sobre sexo (quem não se lembra da icônica cena entre Marnie e Desi, interpretados por Allison Willians e Ebon Moss-Bachrach?), Too Much se dedica a explorar o amor — e talvez esse seja o traço disruptivo nos tempos atuais.

    Imagem: Divulgação

    Jess e Felix formam um casal improvável e cheio de furos (e que casal não é?), mas, justamente por isso, cativante. A loucura de cada um não fecha a loucura do outro, mas acolhe e diverte. Sentimos vergonha alheia ao mesmo tempo em que os amamos, pois sabemos que, no fundo, somos todos estrangeiros na terra do amor, forasteiros dentro das nossas próprias fantasias de final feliz: ele não existe, é claro, mas essa descoberta pode ser uma delícia.


    Sobre o amor, de Leandro Konder
    O amor através dos olhos dos grandes pensadores e escritores. O filósofo brasileiro explora as múltiplas facetas desse sentimento, desafiando convenções e expondo suas complexidades com erudição, clareza e humor fino.


    ***
    Cauana Mestre é psicanalista, mestre em Literatura pela UFPR.

    segunda-feira, 4 de agosto de 2025

     

    A Irmandade Pré-Rafaelita (Pre-Raphaelite Brotherhood ou PRB em inglês), também chamada Fraternidade Pré-Rafaelita ou, simplesmente, Pré-Rafaelitas, foi um grupo artístico fundado em Inglaterra em 1848 por Dante Gabriel Rossetti, William Holman Hunt e John Everett Millais e dedicado principalmente à pintura. Este grupo, organizado ao modo de uma confraria medieval, surge como reação à arte acadêmica inglesa, que seguia os moldes dos artistas clássicos do Renascimento.


    Denominação

    Inseridos no espírito revivalista romântico da época, os pré-rafaelitas desejam devolver à arte a sua pureza e honestidade anteriores, que consideravam existir na arte medieval do final do Gótico e do início do Renascimento (Proto-Renascimento).

    Ao se autodenominarem pré-rafaelitas, realçavam o fato de se inspirarem na arte anterior a Rafael, artista que tanto influenciou a academia inglesa e que era consequentemente criticado pelos pré-rafaelitas. A influenciar este grupo estão também os Nazarenos, uma confraria de pintores alemães que, no início do século XIX, estabeleceu-se em Roma visando recuperar a arte paleocristã.

    Arte pela arte

    Embora se tratando de um grupo de artistas unidos em prol do mesmo objetivo, o grupo não se revelou homogêneo nas suas produções podendo-se observar uma ramificação em dois gêneros diferentes dentro do movimento: por um lado alguns destes artistas (Millais, Holman Hunt) vão dedicar-se aos temas e problemas da sociedade atual cada vez mais materialista, utilizando para isso uma representação realista; por outro lado, outros artistas (Rossetti, Edward Burne-Jones) vão ligar-se mais a temas medievais inspirados em Dante (cujo nome inspirou o primeiro nome de Rossetti) na sua Divina Comédia, em lendas como a do Rei Artur, cenas religiosas, carregando as suas composições de misticismo numa versão mais visionária. Pode-se afirmar que esta segunda variante dominou o movimento.

    Independentemente do tema retratado, torna-se essencial que a obra de arte transmita uma ideia autêntica, fruto da individualidade do artista. Este não tem de se submeter a regras rígidas e castradoras de representação, deve antes ser livre na sua criação artística. A sua arte vai-se opor ao método tradicional de representação da natureza prescindindo do trabalho de ateliê e recusando a normalidade das composições acadêmicas, como, por exemplo, eliminando-se a linha do horizonte.

    John Everett Millais, Ophelia (pormenor), 1851-1852.
    Tate Britain, Londres.

    O artista aspira à beleza poética, à representação além da realidade visível: trabalha-se com a matéria da alma e a espiritualidade. Esta representação do “sonho” vai-se traduzir formalmente na busca da harmonia e equilíbrio entre os elementos. A pintura com base no desenho vai resultar em imagens quase ornamentais repletas de pormenores e detalhes fotográficos, onde o traçado fluido e gráfico busca realçar aspectos estéticos, independentemente da sua semelhança ou não com a realidade. Também na aplicação da cor se vão quebrar laços com as técnicas tradicionais, surgindo agora cores luminosas, esmaltadas, que ajudam à sensibilidade estética de pinturas poéticas onde o romance e o erotismo, unidos a uma certa inocência, têm lugar de destaque.

    O grupo

    O grupo pré-rafaelita vai ser composto maioritariamente por artistas saídos das academias reais que têm o objetivo comum de repor o conceito de arte pela arte, renegando a frivolidade da arte acadêmica. Considerando-se a si próprios como um movimento de reforma, embora sem ser considerado uma vanguarda na totalidade por fazer uso do historicismo e da representação da natureza pela observação, os pré-rafaelistas lançam um periódico denominado The Germ para promover as suas ideias.

    Reúnem-se no seu currículo algumas exposições geradoras de controvérsia pelo novo conceito de composição e tratamento de temas religiosos, assim como sucessos posteriores, quando seguidores do grupo, produzindo cada vez mais ao gosto vitoriano da época, acabam por vender obras a preços bem elevados.

    Além de Ford Madox Brown, que preferiu trabalhar como independente, mas se manteve em contato com o grupo, outros artistas vão ser influenciados pelo estilo linear dos pré-rafaelitas, como William Morris. Este movimento será de extrema importância para a arte dos finais do século XIX e despontar do século XX, nomeadamente para a Arte Nova e o Simbolismo.

    A partir de 1851 John Ruskin vai ser um defensor inicial e patrono da Irmandade Pré-Rafaelita e os seus escritos vão surtir grande influência nas ideias medievalistas do grupo.

    Artistas pré-rafaelitas

    Principais artistas Pré-Rafaelitas

    Artistas e figuras relacionadas



    Bibliografia

    • CALADO, Margarida, PAIS DA SILVA, Elker, Jorge Henrique, Dicionário de Termos da Arte e Arquitectura, Editorial Presença, Lisboa, 2005, ISBN 20130007
    • HINDLEY, Geoffrey, O Grande Livro da Arte - Tesouros artísticos dos Mundo, Verbo, Lisboa/São Paulo, 1982
    • JANSON, H. W., História da Arte, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1992, ISBN 972-31-0498-9
    • KRAUßE, Anna-Carola, Geschichte der Malerei – Von der Renaissance bis heute, Tandem Verlag, Germany, 2005, ISBN 3-8331-1404-5

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    terça-feira, 29 de julho de 2025

     

    Enigmas
     
    É um entardecer tranquilo
    O oceano mal estremece
    Nas águas vejo a cor dos teus olhos
    Como foram.
    Imagino-me a navegar
    sob o abismo das águas.
    Ali mesmo, entre algas e corais
    a solução do enigma.
    Quando se ama,
    o furioso oceano é manso.
    Eu quero crer que sim.
    E acreditei até mesmo
    que os teus olhos
    eram da cor das águas.
    As palavras naufragaram, eu sei.
    Permanecem lá no fundo
    como conchas primitivas
    ou peixes primordiais.
    Talvez sejam as vidas
    que não foram.
    Afinal,
    estamos sempre de partida.
    Migramos com as aves
    porque sim.
    Nesse tempo sabíamos apenas :
    o amor é felicidade pura
    se servido num açafate de açucenas.
    Não sabíamos, porém,
    que o oceano é ciumento :
    guarda para sempre
    o início e o fim dos tempos.
    Não venhas, pois,
    já se fez tarde.
    Basta o que sobrou.
    É muito, é pouco?
    O fogo já não arde.
    O que sobrou?
    Um círculo na areia que alguém traçou.
    -------------N. P. ------2025

    quinta-feira, 24 de julho de 2025

     

     

    Matadouros

     

    Eu nunca padeci de insónias. Neste ano, sobretudo neste ano, são frequentes. Sou capaz de ficar uma hora ou mais a olhar o escuro, com o cérebro liberto a pensar à toa. Depois tomo meio comprimido de uma coisa que me provoca uma suave relaxamento. É legal e os médicos aconselham. O que eles não disseram, ou não sabem, é que o seu efeito depende muito de como foi o dia vivido pelo indivíduo. Acho eu. Senão não compreendia porque “vivi”ontem  um violento pesadelo, embora o tal medicamento me provocasse a sonolência como anteriormente. Não me lembro do sonho, só me lembro que nele chorei como um homem pode chorar se não tiver vergonha ou a perda tiver sido grande demais. O Doutor Freud (ou um seu discípulo mais ortodoxo) diria que foi um sonho sexual. Por exemplo : uma frustração violenta amorosa, o desejo não realizado, rejeitado. Que se guardou no inconsciente e no sonho se manifestou. Para muitos casos a técnica do Doutor Freud acerta, para este não. Não explica as labaredas que eu via numa estrada e uns gritos lancinantes. Não temos apenas sonhos sexuais, e não sou eu apenas que o digo. Conheci um indivíduo que sofria de insónias seguidas de pesadelos horríveis (dizia ele). Estive com ele a petiscar uns camarões num restaurante que fica no cimo de uma rocha num lugar chamado de Porto Novo. Já não via esse amigo há uns séculos. Passou por aqui só para me rever e cumprimentar. Tem um apelido insólito. O nome completo é José António Azeiteiro. Posso escrever o nome dele aqui que ele não se importa. Aliás, não se importa com coisa nenhuma, nem jamais se importou. Ou então importasse com tudo e disfarça. É Azeiteiro porque o avô vendia almudes de azeite, andava de aldeia em aldeia com uma mula carregada, e ele e a besta esfalfavam-se para poder sustentar uma carrada de filhos. Destes viria a nascer um José António no exato dia em que a Segunda Guerra Mundial terminou. Eu acredito em coincidências, não acredito em milagres. Todavia, ele costumava dizer que a Guerra Mundial acabou porque ele nasceu, e não o contrário. A fama que o meu amigo carrega às costas a vida toda é essa mesma : é maluco. Não por ser imbecil, mas por se comportar de uma forma que incomodava toda a gente. Desorientava todo o mundo, ninguém o compreendia nem sabia lidar com as distrações dele, com aquele ar de outro planeta com que ele passava pelas situações mais horríveis. Por exemplo : o pai fora um comunista teve de sair de casa para se tornar funcionário clandestino ; o José António foi criado por umas tias solteironas, chatas como sei lá o quê; ele passou, então, a infância e a adolescência sob uma ditadura terrorista, sofreu muito acho eu com a ausência do pai que ele admirava ; meteu-se nas lutas estudantis contra a ditadura, levou pancada de todos os lados e de todas as maneiras (queriam sobretudo que ele identificasse o lugar onde se escondia o pai), nunca abriu a boca nem para dizer o nome e recusou a porcaria que lhe davam para comer. Ia morrendo.

    Não conversámos sobre isso enquanto emborcavamos copos cheios de cerveja fresquinha e loira. No entanto, enquanto ele deambulava de assunto para assunto sobre os filhos e os netos, sobre as muitas ocupações que desempenhara e coisas que tais, perdendo-se e pedindo-me ajuda para terminar qualquer dessa histórias, eu ia recordando peripécias do seu comportamento invulgar nos tempos remotos em que o conhecera. As coisas aconteciam-lhe e ele fica sempre surpreendido, interrogava: “Porquê?” Ou, “Porquê a mim?”. Na guerra colonial foi alferes-miliciano. Como se apresentou coma uma avaliação na recruta abaixo do medíocre deram-lhe um pequeno grupo de homens que tinham descido todos da serra da Estrela e que não sabiam nicles do que andavam ali a fazer e o alferes perdia-se deles no mato, os homens, rudes mas habituados a sobreviver em qualquer circunstância geográfica, regressados ao quartel eram obrigados, aos gritos do coronel, a procurarem o seu chefe imediatamente. Era descoberto umas vezes ao pé do lago Niassa a lançar paus e a vê-los subir e descer conforme os hipopótamos subiam e mergulhavam, ou a observar os trabalhos hercúleos de um formigueiro. Contaram que num certo dia em que uma razia praticada por comandos incendiou uma pequena aldeia de três ou quatro palhotas, os de infantaria tentaram salvar pelo menos as crianças, enquanto ele se deixou ficar ao longe a chorar como uma dessas crianças, como se soubesse que as crianças não tinham salvação.

     O José António tinha esse apelido, mas era alcunha, não se assinava assim acho eu. No Alentejo, dizem-me , as alcunhas ficam como apelidos. Não sei se é verdade. O meu amigo, isso é certo, não vendia azeite. Lia uns livros esquisitos que falavam de extraterrestres que só eram descobertos entre os humanos se estes colocassem uns óculos especiais, ou de naves que tinham exterminado os dinossauros. Por causa deste genocídio na Faixa de Gaza ele deixou de ler. Agora está convencido que de facto são os humanos que fazem essas atrocidades e outras. Ou seja, que o salto dos macacos para a inteligência não foi fornecido por um monólito negro e gigante como nos contou o Arthur Clark no seu “2001: Uma Odisseia no espaço”. Tudo se trata de humanos sem interferências exteriores.

     Disse-me que tem pesadelos nos quais é frequente chorar desesperadamente. Não com labaredas e carros a arder numa estrada doméstica como eu sonho, sim com cidades arrasadas como sucedeu com a cidade que fora belíssima de Dresden bombardeada pelos aliados (americanos e britânicos) sem qualquer motivo porque já nos finais da guerra não possuía armas nenhumas, nem fábricas a produzi-las, somente uns jardins maravilhosos que, sob as bombas, ficaram atafulhados de pessoas vivas e depois mortas, conforme nos relata Curzio Malaparte no seu “Kaputt”. Gaza. Dresden. José António. Passou pela vida como um meteoro às arrecuas. Quando se encontrar a expirar o último suspiro vai pensar que é natural. Afinal tudo é humano.

    -----------------N. P. ----------------2025