Quarteto do fim dos tempos
Não sabia o que era aquilo. Mas sabia que já estivera ali. Em todas as fotos que publicava no Instagram escrevia uma legenda sempre a mesma : Eu estive aqui. Náo reconheceu a avenida porque encontrava-se coberta de escombros de casas. Um vento do inferno passara por ali. E, no entanto, ele sentia que aquele lugar era idêntico a outros que já visitara, e dos quais publicara as suas imagens e que sob elas escrevera : Estive aqui. Procurou um supermercado para comprar alguma coisa para comer, apetecia-lhe uma bifana, não encontrou nenhum em cima ou por baixo dos escombros. Restaurantes ou Cafés nem sombra deles. Restavam deles sob montes de tijolos, uns dísticos com os seus nomes. E era assim por todas as ruas, as quais, de resto, mal se distinguiam. Pisou sem o ter visto um homem que já estava mais que morto e perguntou a outro que se arrastava numas chinelos onde se podia comer e o indivíduo apontou para lá de uma paredão meio derrubado. Moisés entendeu que para lá haveria onde comer. E foi. Rodeou a parede gigante meio derrubada , pisou outro corpo já tão morto que nem se queixou, observou mais uns dísticos que identificavam ruínas de lojas de roupas, de sapatos, de bicicletas... Foi então que viu a multidão a correr por arrasada avenida abaixo, o que fora antes uma avenida, em direção a um ponto indefinido. Deixou a multidão passar e foi atrás dela. Eram tantos - crianças, jovens que já não eram crianças, mulheres velhas e novas, homens de todas as idades - a preencher todo o espaço, gritando enlouquecidas, que desistiu, deu meia volta e continuou o seu caminho sem destino e sem pão. Era, parecia-lhe, um caminho muito longo que iniciara há muito tempo e desconhecia quando terminaria. Já subira a altas montanhas nevadas e atravessara vales estreitos como gargalos de garrafa, e não encontrara ninguém que lhe fornecesse uma meta. O que num dia tinha como certo, esquecia-se no dia seguinte e tudo retomava a sua repetição. Como num círculo tudo regressava ao ponto de partida. Havia à sua frente um horizonte que se afastava a cada passo que ele dava. Na verdade não estava sozinho, via gentes dentro de enormes camiões, dos automóveis utilitários, de comboios cada vez mais rápidos, mas não vislumbrara um corpo que materializasse uma ideia, ou uma força social que realizasse a força transcendente do ideal. Dado que não se lembrava de nada, admitiu a hipótese de se encontrar sob o efeito de ressacas sucessivas. Quiçá fosse alcoólico e que, portanto, não era real o que via, a caminhada, a vida, mas somente os delírios de um doente. Para tirar dúvidas beliscava-se, molhava o rosto frequentemente nas fontes que encontrava à beira das estradas , chegou ao ponto drástico de se colocar à frente de um automóvel que circulava : não foi atropelado por por causa daqueles reflexos a que chamamos milagres. Caminhava como aquelas aves que atravessam metade do mundo para passarem o verão na outra metade. Sim. E quando chegasse a velhice? Ou uma doença a necessitar cuidados? Atravessara, julgava ele, os lugares mais inóspitos e nunca perdera o fôlego. Postas estas circunstâncias, começou a suspeitar que era um nativo doutro planeta. Aliás, a bem dizer, não podia ser ressaca alguma, porque não se recordava de bebedeira nenhuma. Perguntou-se se o destino da sua caminhada sem metas definidas não seria exatamente reencontrar o sítio onde descera do firmamento. Não se lembrava do desembarque, nem do dia e ano, não guardava recordação alguma, um fragmento fugaz que fosse, de alguma nave invulgar. O que ele sentia, e unicamente suspeitava, é que não era dali. Não podia ser dali. Não porque não fossem encantadoras muitas das planícies floridas que calcara e fantásticas muitas das montanhas que escalara, as lagoas com nenúfares, os rios sulcados por canoas primitivas mas eficientes, ribeiras com raparigas a enxaguarem os peitos tesos, bandos de crianças a correrem felizes atrás de uma bola de trapos, choupanas de barro seco e palha nos telhados com velhos muito escuros e muito velhos sentados no chão à porta, mulheres de saiotes subidos a guiarem búfalos em campos de arroz. Sim. Sentia, porém, uma espécie de nostalgia, uma saudade, como se tivesse perdido alguma coisa preciosa, talvez um beijo, um colo e um abraço, um lugar. Sem nenhuma memória do que fosse.. Se ele se recordasse, saberia que os nativos do seu planeta não possuíam memória de longa duração, somente de curta duração. Isto é, viam uma coisa bonita ou feia e esqueciam-na escassos minutos depois. Certo dia fez um amigo ( não se recordava já) e esse amigo ao fim de algum tempo disse-lhe: “Ouve lá, acho que tu estás sempre ressacado!”. “Quê?”, retorquiu ele a começar a esquecer-se do significado da palavra. Na verdade até que não bebia demasiado. Doutra vez fez uma amiga que gostou muito dele, até lhe dava beijinhos na ponta do nariz e mordiscadelas nas orelhas e fazia-lhe festas no cabelo que ele raramente cortava ; contudo esqueceu-se dela, ou melhor, na realidade esquecia-se dela passados uns minutos, talvez uma hora, depois relembrava-se, ou ela relembrava-o com novas mordiscadelas, até que se cansou dos esquecimentos dele e descobriu rapidamente um senhor que nunca se esquecia dela. Pelo menos foi a explicação que ela deu.
Conhecera nas suas viagens exploratórias lugares inesquecíveis (não para ele) : vales atapetados de relva muito verde, pincelada com o vermelho das papoilas e o azul das malvas, nomes que teria gostado de decorar, mas, infelizmente. esquecia de um momento para o outro. Fora desses lugares sublimes, porém, cruzara-se a miúde com terrestres ( admitindo que ele próprio o não fosse) a matarem-se uns aos outros, envolvidos em zaragatas por motivos fúteis ( para ele que esquecia tudo). Passou ao pé de uma cidade onde existia uma praça que ninguém atravessava a menos que quisesse levar um tiro de uns tipos armados que vigiavam escondidos nas colinas sobranceiras com uns binóculos ao longe (felizmente para ele esqueceu-se depressa daquela estupidez que se poderia converter para ele num tremendo pesadelo). Vira igualmente outros atos de igual estupidez : belas e grandes cidades cujos habitantes foram chacinados com bombas sem culpa formada, cidades com nomes esquisitos como Dresden, Kiev e Estalinegrado na mesma época, Hiroshima e Nagasaki e Seul. Se ele se lembrasse, lembrar-se-ia de dezenas e dezenas de aldeias e cidades incineradas que vira ao passar ao longe, por hordas sanguinárias de etnias, tribos e impérios. Reteria na memória o caos. O horror. Assistia hoje, para amanhã despertar de uma noite agitada completamente esquecido do que vira. Por isso sobrevivia. Por isso caminhava em busca do que esquecera.
Não possuindo bússola, nem memórias, guiava-se pelo movimento aparente do sol e por determinadas estrelas das quais ele se esquecia de dia para se lembrar de novo à noite. E , com a saudade de palavras que não dizia, de atitudes que não tomava, adormecia de mansinho, nem triste, nem contente. Esquecia-se depressa do que o contentava e do que o entristecia.
Certo dia cansou-se do que via ( foi naquele dia em que viu uma cidade cheia de gente a ser bombardeada com canhões no solo e nos céus, com máquinas aterradoras a esmagar cadáveres naquela faixa de terra a que ouviu chamar de Gaza), deitou-se na areia húmida da praia ao pé de uma montanha de cadáveres de crianças, num sítio onde o sangue escorria para o mar. E adormeceu. Como a sua memoria era curta, esqueceu-se de acordar.
----------------------Nozes Pires --------------2025
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