sexta-feira, 9 de julho de 2021

 

 <span class="arranque"><span style="color:#d04e9c">Exposição I</span></span> “Pomona” (retrato de Alice Liddell), de Julia Margaret Cameron, 1872 <span class="creditofoto">Victoria & Albert Museum</span>

Exposição I “Pomona” (retrato de Alice Liddell), de Julia Margaret Cameron, 1872 Victoria & Albert Museum

Em Londres, uma maravilhosa exposição a partir da Alice de Lewis Carroll traz — em segurança — as multidões de volta ao Victoria & Albert Museum

texto Jorge Calado em Londres

A Alice no País das Maravilhas e Do Outro Lado do Espelho era uma menina de carne e osso — como se dizia nos tempos em que os animais falavam — e foi também uma mulher notável. Conheci-a, por interposta obra, tinha eu 10 anos, quando a minha prima Lô, professora primária, me ofereceu o livro no dia do meu aniversário. Alice não escreveu o livro, mas inspirou-o; ouviu a história da boca do seu amiguinho Charles Lutwidge Dodgson, tutor de Matemática em Christ Church, numa “tarde dourada” de julho de 1862 em Oxford e arredores, e gostou tanto da narrativa que lhe pediu para a passar a escrito. O que ele foi fazendo, a tempo de lhe oferecer o manuscrito ilustrado de 90 páginas como prenda de Natal em 1864. O livro seria publicado um ano depois, então sob o pseudónimo de Lewis Carroll, com ilustrações de John Tenniel fortemente inspiradas nos desenhos originais de Dodgson (que, além de ser um fotógrafo genial, era também um desenhador talentoso).

Um passeio histórico

Embora pelo nome não pareça, Christ Church é um dos mais reputados (e ricos) colégios da Universidade de Oxford, com a particularidade de a sua capela ser a catedral da cidade. Tom Tower, a torre sineira que coroa a entrada principal do colégio, foi riscada por Christopher Wren, professor de Astronomia da universidade e arquiteto da Catedral de São Paulo, em Londres; o sino pesa 6,25 toneladas e é o maior e mais sonoro de Oxford. Alice era uma dos 10 filhos do deão (reitor) do colégio, Henry Liddell. Amigo íntimo da família, Dodgson organizou com o reverendo Robinson Duckworth, seu colega do Trinity College, uma passeata e um piquenique num barco a remos, Isis arriba, até Godstow, a cerca de 4 quilómetros de Oxford. (Isis é o nome que o Tamisa toma em Oxford.) Como convidadas, três filhas do dean Liddell: Lorina (13 anos), Alice (10 anos) e Edith (8 anos). Para as entreter durante a viagem, Dodgson foi inventando e contando uma história esquisita, onde a protagonista, Alice, mergulhava num mundo maravilhoso habitado por personagens meio malucas e animais bem-falantes. Nota pessoal: nos meus tempos oxonianos fiz muitas vezes aquele desvio até Godstow para apreciar as ruínas da abadia onde a Bela Rosamunda, amante de Henrique II, viveu os últimos anos (século XII); seguia-se, em geral, um jantar na Trout Inn local, quase sempre de truta acabada de pescar.

Pensar fora da caixa

Dodgson era gago e às vezes tinha dificuldade em pronunciar o seu apelido, Do-do-dodgson — o que o levou a introduzir na história o dodó, uma ave grande e canhestra, incapaz de voar, nativa da ilha Maurícia (no oceano Índico), extinta no século XVII por prazer, sem proveito. Os culpados foram os marinheiros (também portugueses) que aportavam à ilha e as matavam por desporto, mesmo sem lhes apreciar a carne rija. Sucede que os últimos restos de um dodó, ainda com tecido epidérmico, são a cabeça e um pé do bicho, no University Museum de Oxford, que muitas vezes admirei, extasiado. Quanto ao pseudónimo Lewis Carroll, deriva da forma latina do nome verdadeiro: Carolus (Charles) Ludovicus (Lutwidge). Dodgson era um hábil manobrador de palavras e engenhoso a inventar trocadilhos. O significado do título da grandiosa exposição no Victoria & Albert Museum (V&A), “Alice: Curiouser and Curiouser”, é qualquer coisa como “Alice: Cada Vez Mais Esquisita”. É verdade que Alice era uma menina extremamente curiosa, mas aqui o sentido é outro, sendo a palavra curiouser um neologismo criado por Carroll. “Curiouser and curiouser”, exclamava Alice — chorando copiosamente a ponto de se esquecer do que era falar em bom inglês — quando se viu a crescer, com o pescoço a esticar como se fosse um telescópio a abrir-se e a cabeça a bater no teto; os pés, esses, ficavam cada vez mais longe, a perder de vista. Ou seria a contração do espaço, antecipando a teoria da relatividade? Em Londres, o mundo maravilhoso da exposição abre espetacularmente com o lago de lágrimas de Alice (onde ela receava afogar-se).

 <span class="arranque"><span style="color:#d04e9c">Exposição II</span></span> Fotograma de “Curious Alice”, uma experiência de realidade virtual criada pelo V&A e HTC Vive Arts a partir de arte original de Kristjana S Williams, 2020

Exposição II Fotograma de “Curious Alice”, uma experiência de realidade virtual criada pelo V&A e HTC Vive Arts a partir de arte original de Kristjana S Williams, 2020

Foi com a “Alice no País das Maravilhas” que aprendi a pensar e a tirar conclusões fora da caixa. “Porque é que um corvo é parecido com uma escrivaninha?”, pergunta o Chapeleiro Maluco. Seria uma alusão ao poema narrativo “O Corvo” (1845), de Edgar Allan Poe? Ou ao facto de o bater das asas do corvo se assemelhar ao abrir e fechar do tampo da escrivaninha? Jogando com os múltiplos significados das palavras, o próprio Carroll arriscou uma solução em 1896: tanto o corvo como a escrivaninha produzem notas (desafinadas). (Em inglês, flat significa desafinação para baixo, mas também plano, como uma folha de papel.) Se a curiosidade é a raiz de toda a inovação, o raciocínio lateral e o nonsense aparente são as molas da imaginação. Aposto que o público — que inclui muitas crianças — sai desta longa mas ludicamente interativa exposição a pensar melhor!

Oxford don

Em Oxford, dons são os membros das Senior Common Rooms (SCR) dos colégios, isto é, o conjunto de professores-tutores das várias disciplinas (que em Christ Church tomam a designação de students; os estudantes propriamente ditos são os undergraduates). Charles L. Dodgson (1832-98) era um génio polivalente com uma memória prodigiosa. Como tutor de Matemática parece que era sóbrio e tímido, a roçar o chato, mas no convívio diário revelava uma mente aguçada e irrequieta. Ficamos a conhecê-lo melhor na apresentação que inicia o percurso expositivo. Além dos seus vários interesses criativos (matemática, lógica, literatura, fotografia, jogos de palavras e números, xadrez, etc.), Dodgson também era um ilusionista amador, colecionava caixas de música e frequentava avidamente o teatro. Entre os seus amigos contavam-se o pintor pré-rafaelita John Everett Millais, o físico-químico Michael Faraday e a atriz Ellen Terry. É esta salgalhada de temas que nos introduz no País das Maravilhas. Instrumentos de observação, relógios complexos, modelo do esqueleto do dodó, bule de chá, um álbum de fotos dos membros das SCR de Christ Church tiradas por Dodgson, etc. Mas também surpresas como o grotesco retrato da “Velha” (c. 1513), de Quentin Matsys, que terá inspirado a figura da Duquesa Feia, a antagonista da terrível Dama de Copas (ou Rainha dos Corações, em inglês).

Quanto ao pseudónimo Lewis Carroll, deriva da forma latina do nome verdadeiro: Carolus (Charles) Ludovicus (Lutwidge)

O supremo encanto da beleza é o encontro com o retrato de Alice aos 20 anos como “Pomona”, a deusa romana dos jardins e das árvores de fruto. A autora é uma das maiores retratistas da história da fotografia, Julia Margaret Cameron. No meio de um enquadramento foliáceo, enfeitada com flores, Alice Liddell revela-se uma jovem determinada que sabe o que quer. A propósito: em 1988 adquiri para a Coleção Pública de Fotografia o mais belo dos retratos de Alice Liddell, em grande formato, também da câmara de Cameron; desta vez apanhara Alice de perfil e dera-lhe o título de “Aleteia” (1872), que em grego significa “Verdade”. O curioso (ou “curiouser”, como diria Alice) é que esta joia das coleções fotográficas portuguesas nunca mais foi aproveitada por quem a detém — o Estado! Nem sequer no centenário da morte de Dodgson, em 1998, ou no sesquicentenário da publicação do livro de Alice (2015), celebrado em todo o mundo, ou mesmo este ano, em que se comemoram os 150 anos do que Alice encontrou do outro lado do espelho... Será que a fotografia ainda existe e continua em bom estado de conservação?

Personagens

O país maravilhoso de Alice é um labirinto, ou melhor, uma toca sem fundo como aquela onde a protagonista se enfia quando vai a correr atrás do apressado Coelho Branco. “Alice no País das Maravilhas” (1865) e “Do Outro Lado do Espelho, e O Que Alice Lá Encontrou” (1871) são outras tantas galerias de personagens excêntricas que desa­fiam as regras da lógica mas antecipam o futuro de uma sociedade em rápida transformação industrial, graças ao progresso da ciência e da técnica. Suspeita-se que todas elas e eles sejam caricaturas de pessoas reais, a começar pelos participantes no passeio a Godstow. Se a Dodgson coube o Dodó, o Pato (duck, em inglês) referia-se ao seu colega Duckworth; Lorina ficou com o Lori (um papagaio australiano de cores vivas) e Edith com a Aguieta (eaglet, em inglês).

 <span class="arranque"><span style="color:#d04e9c">Exposição III</span></span> Imagem da instalação de realidade virtual em “Alice: Curiouser and Curiouser”, Victoria & Albert Museum

Exposição III Imagem da instalação de realidade virtual em “Alice: Curiouser and Curiouser”, Victoria & Albert Museum

A história da Tartaruga Falsa está cheia de alusões à educação das meninas Liddell (que, à moda vitoriana, eram educadas em casa). Por exemplo, o “velho congro”, que é mestre de Drawling (corruptela de Desenho, significando uma fala arrastada), não era outro senão o crítico de arte e futuro professor real de belas-artes na Universidade de Oxford, John Ruskin, que todas as semanas vinha ensinar Desenho, Esboceto e Pintura a Óleo às irmãs Liddell. Nas falas da melancólica Tartaruga, Sketching/Esboceto passa a Stretching/Esticando e Painting in Oils/Pintando a Óleo a Fainting in Coils/Desmaiando em Hélice, isto é, com a cabeça a andar à roda. Quanto ao apressado Coelho Branco, de olhos cor de rosa e relógio no bolso do colete, seria o deão Liddell, conhecido por chegar sempre atrasado às reuniões, ou talvez o professor régio de Medicina, Henry Acland, grande amigo de Ruskin. Afinal, o mundo das maravilhas de Alice é pequeno: emana da cabeça de um don com uma imaginação fértil e cabe quase todo num colégio; o seu significado, porém, transcende a origem. Nota suplementar: Christ Church fun­ciona com um atraso de cinco minutos em relação à hora de Greenwich, por estar 1° 15’ 24” a oeste do meridiano padrão. O sino Tom continua a tocar as 101 badaladas da praxe — em honra de cada um dos membros originais do colégio; o 101º foi acrescentado em 1663 —, todas as noites, pelas 21h05. A partir de 1973, a minha base oxoniana passou a ser Christ Church, em aposentos paredes-meias com os ocupados por Dodgson um século antes.

A outra Alice

Um dos aspetos mais gratificantes do mito é que Alice Liddell viveu o suficiente para assistir à globalização do seu alter ego ficcional. Em 1872, com 19 anos e seguindo a melhor tradição da classe alta inglesa, completou a educação fazendo o Grand Tour da França e Itália, na companhia das irmãs Lorina e Edith. Visitaram mais de 20 cidades, admiraram monumentos e museus, subiram várias vezes à cratera do Vesúvio (que entraria em erupção poucos meses depois), etc. Alice aproveitou para esboçar e pintar o que via. Em 1880 casou na Abadia de Westminster com um ex-aluno de Dodgson, Reginald Hargreaves, homem de leis e famoso jogador de críquete, de quem teve três filhos: Alan, Leopold e Caryl (cujo nome poderá ter sido, ou não, uma homenagem a Carroll). Os dois filhos mais velhos morreram na I Guerra Mundial, mas Alice reagiu estoicamente: “Temos de nos lembrar que as crianças são-nos apenas emprestadas por Deus.” Dois anos após a morte do marido, em 1926, viu-se obrigada a vender o manuscrito de Carroll, inicialmente intitulado “Aventuras Subterrâneas de Alice”. A venda em leilão, a um colecionador americano, rendeu 15.400 libras (equivalente a mais de um milhão de euros em moeda atual), um recorde para um manuscrito literário; seria recomprado por um grupo de filantropos americanos em 1946 e oferecido ao British Museum, num gesto simbólico de gratidão ao “nobre povo que sozinho resistiu a Hitler durante muito tempo”. (Os EUA só entraram na Guerra no final de 1942.)

Recriando Alice

Tudo o que é universal tem uma origem local. Alice é uma ideia tipicamente oxoniana que se tornou um conceito global. A prová-lo está o facto de os livros de Alice terem sido traduzidos em cerca de 180 línguas (quando existem 193 países no mundo, com vários partilhando a mesma língua). Depois da Bíblia e das peças de Shakespeare, não há obra mais popular. A imaginação científica e artística de Dodgson era primariamente visual. Tanto o manuscrito como a primeira e segunda edições de “Alice no País das Maravilhas” distinguem-se por um grafismo inovador. Por exemplo, ‘O Conto do Rato’ é um poema concreto, com as palavras serpenteando pela página em letras cada vez mais pequenas. A exposição de Londres usa truques semelhantes que distorcem o espaço e desorientam os visitantes: espelhos anamórficos, gravuras e objetos que saltam das paredes, outros que voam pelo ar, etc. É, de facto, um universo de pernas para o ar, como nos piores pesadelos, mas vamos sendo guiados pelo famigerado Coelho Branco, que surge nos locais mais imprevisíveis.

 <span class="arranque"><span style="color:#d04e9c">Exposição IV</span></span> “Uma Merenda Maluca”, de Salvador Dalí, 1969 Salvador Dalí, Fundació Gala-<span class="creditofoto">Salvador Dalí, DACS 2019. Dallas Museum of Art</span>

Exposição IV “Uma Merenda Maluca”, de Salvador Dalí, 1969 Salvador Dalí, Fundació Gala-Salvador Dalí, DACS 2019. Dallas Museum of Art

Alice depressa transcendeu a literatura para contaminar a pintura, a escultura, o teatro, o cinema emergente, o bailado e a ópera, as artes gráficas (incluindo a publicitária), a moda, a cultura popular, todas as ciências... No “Manifesto Surrealista” (1924), André Breton valorizou o “sentimento infantil de maravilha” que é peculiar a Alice. Várias obras de Max Ernst, inspiradas pelos livros de Carroll, como “O Rei a Jogar com a Rainha” (bronze, 1944), ilustram a exposição. Salvador Dalí está presente com a recriação do “Mad Tea Party” — a merenda de malucos que junta Alice com o Chapeleiro, a Lebre de Março e o Arganaz dorminhoco —, uma de 12 pranchas para uma nova edição da obra de Carroll; à sua moda, a mesa é um relógio mole, a derreter-se. Jorge Luis Borges escreveu um prefácio para a tradução espanhola das obras do criador de Alice; considerava-as “fantasia autêntica”. James Joyce trouxe o espírito de Carroll para a literatura moderna; em ambos, o som das palavras é tão (ou mais) importante do que o respetivo significado. Josef K, o protagonista de “O Processo” (1915-35), de Franz Kafka, é um personagem à procura de si próprio, tal como Alice. “Quem sou eu?”, pergunta repetidamente Alice; sabe muito bem quem não é... Outro fã indefetível das obras de Dodgson era Vladimir Nabokov, que lhe chamava Lewis Carroll Carroll, por ter sido o primeiro Humbert Humbert, numa referência ao seu romance “Lolita” (1955). Estava enganado. Embora Mrs. Liddell tivesse descontinua­do a amizade entre Dodgson e Alice, esta assegurou até ao fim da vida que a relação fora sempre sã e inocente. Não podemos julgar os comportamentos do passado pelos critérios do presente (entre outras razões, para não comprometer o futuro).

Os vários episódios das aventuras de Alice são eminentemente teatrais, cinematográficos, até, 30 anos antes da invenção do cinema. A pequena heroína abre portas e corre cortinas, viaja, interatua com dezenas de carateres, argumenta, joga, diverte-se e tem medo. O don de Oxford era um ‘teatrófilo’ consumado. Em miúdo brincara com um teatro de fantoches, inventando vários espetáculos, e ao longo da vida assistiu a mais de 300 peças de teatro com os maiores atores da época (Kean, Irving, Terry, etc.). Ambicionava ver a sua Alice em cena, mas não sabia escrever para o teatro. Em 1876 autorizou a produção de uma revista musical, “Aventuras de Alice, ou a Dama de Copas e as Tortas em Falta”, que pouco tinha a ver com a sua criatura, mas 10 anos depois a “Alice no País das Maravilhas” subia ao palco do Prince of Wales Theatre, em Londres. Com música ou sem música, a febre ‘aliceana’ nunca mais parou. Ainda em 2015, o musical de Damon Albarn (dos Blur e Gorillaz) e Moira Buffini, “wonder.land”, estreado no National Theatre, transportou a história para as maravilhas online. A toca onde diariamente nos enfiamos e corremos atrás do Coelho Branco é, afinal, o ecrã do telemóvel! Ajudando à festa, havia ecos de Alexander McQueen nos figurinos. A moda, sempre gulosa, há muito que se aproveitara de Alice — o Alice look, de mulherzinha poderosa.

 <span class="arranque"><span style="color:#d04e9c">Exposição V</span></span> Zenaida Yanowsky na Rainha Vermelha do bailado “Alice’s Adventures in Wonderland”, de Christopher Wheeldon, Royal Ballet <span class="creditofoto">Johan Persson/ROH</span>

Exposição V Zenaida Yanowsky na Rainha Vermelha do bailado “Alice’s Adventures in Wonderland”, de Christopher Wheeldon, Royal Ballet Johan Persson/ROH

Nos anos 1970, o americano David Del Tredici compôs várias obras inspiradas por Alice, incluin­do “Final Alice”, uma “ópera escrita em forma de concerto”, mas o prémio da mais bem-sucedida ópera vai para a “Alice” da sul-coreana Unsuk Chin, estreada em Munique em 2007, com design e encenação do brechtiano Achim Freyer. Os ‘balletómanos’ apreciaram as “Alice’s Adventures in Wonderland”, coreografadas por Christopher Wheeldon para o Royal Ballet (2011), em Covent Garden, com o sapateado do Chapeleiro à Gene Kelly e as fantasias geométricas à Busby Berkeley. Há também grande expectativa quanto à estreia mundial do bailado “Alice” com música de Philip Glass, programado pela Opéra National du Rhin para fevereiro próximo.

Efeitos especiais

Século e meio após a publicação das aventuras de Alice, existem mais de 300 edições ilustradas por artistas de todo o mundo. Todavia, são as imagens iniciais de Carroll-Tenniel que continuam a marcar. A inspiração fora mútua. Sabe-se que Dodgson decidiu retirar o episódio da ‘Vespa com Peruca’, de “Do Outro Lado do Espelho”, quando Tenniel lhe disse que não via como ilustrá-lo! De resto, os desenhos de Tenniel antecipavam os pesadelos mais absurdos do surrealismo e também os espetaculares efeitos especiais de um cinema por nascer. Observe-se, por exemplo, a sua realização de Alice a atravessar o espelho, metade do corpo de um lado e metade do outro.

 <span class="arranque"><span style="color:#d04e9c">Exposição VI</span></span> Imagem da instalação de entrada em “Alice: Curiouser and Curiouser”, Victoria & Albert Museum

Exposição VI Imagem da instalação de entrada em “Alice: Curiouser and Curiouser”, Victoria & Albert Museum

A primeira adaptação cinematográfica, por Percy Stow e Cecil Hepworth, data de 1903. Com quase 10 minutos de duração, era o mais longo filme britânico produzido até então. É uma das relíquias da exposição. Infelizmente, Dodgson tinha morrido cinco anos antes. Nos EUA, houve um filme de 10 minutos produzido em 1910 pela Companhia Edison e depois outro de 50 minutos rea­lizado por W. W. Young em 1915. Filmes mudos, claro, embora recheados de efeitos especiais. O cinema sonoro só arrancou em 1927 com a grande-metragem “O Cantor de Jazz”, de Alan Crosland. Entretanto preparava-se o centenário de Charles Lutwidge Dodgson em 1932, que proporcionaria o segundo Grand Tour — desta vez, à América, e triunfal — de Alice Hargreaves (née Liddell): nada mais nada menos do que um doutoramento Honoris Causa em Letras pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Para uma mulher a quem tinha sido negada uma educação universitária, receber, aos 80 anos, o grau de doutora seria sempre uma experiência arrasadora. No discurso de agradecimento assinalou que, “se Lewis Carroll me tivesse contado a história que hoje estou a viver aqui, ter-me-ia parecido tão estranha como as histórias extravagantes que ele costumava contar-me, usando-me como a sua Alice”. Um ano depois, a Paramount contratava-a como consultora do filme “Alice no País das Maravilhas” (1933), de Norman Z. McLeod; Cary Grant fazia de Tartaruga Falsa. Quanto a Alice Hargreaves, morreu em 1934, presume-se que feliz, em Lyndhurst, naquele que é hoje o Parque Nacional da Floresta Nova, em Inglaterra. O seu arquivo pessoal de cartas, diários de viagem, cadernos de desenhos, álbuns de fotografias (por Carroll) e objetos íntimos — como o anel de noivado e um vestido — foi leiloado pela neta e única herdeira, Mary Jean, em 2001 (para não ter de o dividir pelos três filhos). Rendeu mais de dois milhões de libras!

O meu encontro com Alice no cinema deu-se no princípio da minha adolescência, com o filme (1951) de desenhos animados de Walt Disney. Lembro-me que saí desapontado; ficara preso ao mundo de Dodgson-Tenniel e não imaginava uma Alice loura de vestido azul e bibe branco nem as cores berrantes das maravilhas...

O estado da arte (da exposição)

A questão era: como irá o V&A resolver a quadratura do círculo que é dar vida ao contrassenso e à imaginação delirante? Sentia-me confiante, porque não há como os ingleses a produzir e a montar exposições. Mesmo sem fazer as contas, posso afirmar que, das 10 melhores exposições que vi em toda a minha vida, pelo menos nove foram em Londres, a começar com “The Art of Hollywood”, também no Victoria & Albert Museum, em 1979. Imaginem o que era, há mais de 40 anos, entrar numa exposição por baixo de uma piscina de fundo transparente, ver um cadáver a flutuar e perceber logo que estávamos dentro do set de “Sunset Boulevard” (“O Crepúsculo dos Deuses”, 1950), de Billy Wilder, prontos para ouvir em flashback a história do guionista Joe Gillis (William Holden)!

Um dos aspetos mais gratificantes do mito é que Alice Liddell viveu o suficiente para assistir à globalização do seu alter ego ficcional. Em 1880 casou com um ex-aluno de Dodgson, homem de leis e famoso jogador de críquete, de quem teve três filhos

Agora, em “Curiouser and Curiouser”, as soluções foram ainda mais espantosas, porque se tratava de refundar o espaço à medida do universo desvairado de Carroll. Logo ao descer as escadas que dão acesso à Sainsbury Gallery do V&A, tive a sensação premonitória de que me estava a enfiar pela toca do Coelho Branco. (Atenção: há a alternativa do elevador.) Na versão original, a história era sobre o mundo subterrâneo de Alice; no V&A, a exposição desenrola-se no subsolo do museu. O sucesso expositivo deve-se, por um lado, ao designer Tom Piper, nas três dimensões da enorme caverna que acolhe Alice nas suas várias encarnações, e, por outro, à islandesa Kristiana S. Williams, na bidimensionalidade das ilustrações para o catálogo, também usadas nas experiências de realidade virtual. (Piper ficou famoso em 2014 como cocriador da instalação de 888.246 papoilas de cerâmica — uma por cada soldado britânico morto durante a I Guerra Mundial — junto à vetusta Torre de Londres.)

Enquanto o ambiente inicial da exposição é clássico e bibliotecário, a traduzir as rotinas e convenções da época vitoriana, o espaço vai-se curvando e alterando à medida que nos envolvemos no mundo maravilhoso da mente de Carroll. O célebre Gato de Cheshire — o condado natal de Dodgson — aparece e desaparece, sempre sorridente, num espaço curvilíneo — ao mesmo tempo que ouvimos a canção ‘White Rabbit’ (1967), dos Jefferson Airplane. Mais adiante, a mesa posta para o Chá e Merenda vai mudando de cor — do tenebroso preto e branco para uma paleta floral iridescentemente cromática. Na mente de Carroll, a vida é um jogo, às vezes perigoso: de cartas, no País das Maravilhas; de xadrez, Do Outro Lado do Espelho. A preto e branco? Nem pensar! A vermelho e branco, que o rouge era o novo noir. No final da história, Alice, mero Peão, é promovida a Dama/Rainha, com coroa na cabeça, mas tudo não passara de um sonho, e ela acorda com um gatinho preto no regaço (que será, talvez, a Dama de Copas vermelha).

 <span class="arranque"><span style="color:#d04e9c">Exposição VII</span></span> Fotografia tirada durante uma manifestação contra o ex-Presidente da África do Sul Jacob Zuma, Cape Town, 7 de abril de 2017 <span class="creditofoto">Ashraf Hendricks</span>

Exposição VII Fotografia tirada durante uma manifestação contra o ex-Presidente da África do Sul Jacob Zuma, Cape Town, 7 de abril de 2017 Ashraf Hendricks

Ao longo de “Curiouser and Curiouser”, as montras, os espelhos e os múltiplos ecrãs de cinema são outras tantas janelas abertas sobre as impossibilidades vividas por Alice. Verdades alternativas? Não, apenas realidades virtuais. No Jardim das Flores Vivas (que falam) podemo-nos sentar e jogar virtualmente croquet com a Rainha Vermelha, usando ouriços-cacheiros, bem enrolados, como bolas. Lembrei-me dos jogos de croquet com Lady Hayter, mulher do warden (diretor) do New College de Oxford, a minha alma mater fundada em 1379; quanto aos ouriços, encontrei vá­rios quando passeava nos prados de Christ Church, os mesmos frequentados por Carroll.

A ciência moderna

Os livros da Alice são infindos e nunca estão completamente lidos. À medida que crescia e estudava, relia-os e descobria coisas novas, por exemplo as propriedades químicas e fisiológicas das substâncias alucinógenas. Ou a explicação da maluquice do Chapeleiro, sempre de cartola, por envenenamento com mercúrio devido ao uso de nitrato de mercúrio no fabrico do feltro. Em Oxford corria o boato de que tal envenenamento era detetado por três sintomas: “Um deles a perda de memória e os outros dois já não me lembro...” A relatividade do espaço-tempo é uma constante ao longo de ambos os livros; a incerteza quântica é outra; a reversibilidade do tempo, rebatendo a causalidade, é mais outra. Por exemplo, a Rainha Branca — a mesma que antes do pequeno-almoço consegue acreditar em seis coisas impossíveis — grita antes de lhe picarem o dedo, e o seu sangue brota antes da picada. Por outras palavras, a causa segue-se ao efeito, como em certos fenómenos quânticos. E por aí fora, até aos dias de hoje.

Século e meio após a publicação de Alice, existem mais de 300 edições ilustradas por artistas de todo o mundo. Mas são as imagens de Carroll-Tenniel que continuam a marcar

Não terá sido por acaso que o CERN (Conselho Europeu para a Investigação Nuclear) deu o nome de ALICE (A Large Ion Collider Experiment) a um dos grandes detetores do Grande Colisor de Hadrões, em funcionamento desde 2010. Com uma envergadura de 26 x 16 x 16 metros e 10 mil toneladas de massa, ALICE é usado para estudar as colisões entre iões de chumbo em condições equivalentes a temperaturas 100 mil vezes maiores do que a do centro do Sol. A essas temperaturas, os neutrões e protões do núcleo desfazem-se num plasma de quarks e gluões, cujo estudo permitirá esclarecer a natureza da força forte que mantém o núcleo coeso. Cerca de 1500 cientistas de mais de 150 institutos de física de quase 40 países estão envolvidos no projeto. (Quark é uma palavra inventada por James Joyce — grande fã de Alice — em “Finnegans Wake”, de 1939: “Three quarks for Muster Mark”, que pode ou não significar “Três cuartos [de cerveja?] para o Sinhor Mark”.)

Mulher para todas as épocas

Com o correr dos anos, Alice foi crescendo e adaptando-se às novas circunstâncias. Em 1966, a Alice onírica de Jonathan Miller, adaptada para a TV com música de Ravi Shankar, já era uma rapariga em vias de se tornar mulher. Passado um século desde o célebre passeio de barco até Godstow, os psicadélicos anos 1960 dariam um novo impulso ao mito. A ideia era “vaporizar a mente... bombardeando os sentidos”. A prosa de Carroll vinha mesmo a calhar. John Lennon revelou que a famosa ‘Lucy in the Sky with Diamonds’ (LSD), do álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” (1967), tinha sido inspirada pela leitura dos livros de Carroll. Três anos depois, o artista pop Peter Blake, autor da capa do disco dos Beatles, representava Alice com uma coroa na cabeça: a Rainha! A menina-mulher para quem tudo era possível, e que no princípio do século fora a porta-estandarte das sufragistas, tornava-se agora a representante das causas feministas e libertárias. Hoje, Greta Thunberg é outra reencarnação de Alice. As histórias de Lewis Carroll são, afinal, parábolas para todos os tempos.

Regresso ao princípio: “Curiouser and Curiouser” abre com uma citação (1844) de Benjamin Disraeli, ministro das Finanças e duas vezes primeiro-ministro da época vitoriana: “Alimenta a tua mente com grandes pensamentos.” Infelizmente, não consta que os políticos de hoje visitem museus ou exposições...

“Alice: Curiouser and Curiouser”, Victoria & Albert Museum, Londres, até 31 de dezembro

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