quinta-feira, 8 de julho de 2021

Paula Rego, um ícone da pintura portuguesa na Tate, em Londres
https://www.publico.pt/2021/07/06/culturaipsilon/noticia/retrospectiva-paula-rego-tate-britain-pinta-virgem-maria-menino-jesus-piloto-1969354

  Artes Retrospectiva de Paula Rego na Tate Britain,

 enquanto ela pinta a Virgem Maria com um Menino Jesus piloto Nunca a artista pensou que este museu viria a mostrar assim o seu trabalho. Exposição que reúne mais de 100 obras feitas ao longo de 60 anos abre esta quarta-feira. Para ver até 24 de Outubro (se a pandemia deixar). Lucinda Canelas 6 de Julho de 2021, 21:20 Partilhar notícia 563 Partilhar no Facebook Partilhar no WhatsApp Partilhar no Twitter Partilhar no LinkedIn Partilhar no Pinterest Enviar por email Guardar Foto Em The Dance (1988), uma das suas pinturas mais celebradas, Paula Rego representa duas vezes o marido, o pintor Victor Willing, que morreria em 1988 Cortesia: Tate Quando não podemos viajar para ver uma exposição sobre a qual devemos escrever, não temos outro remédio senão recorrer ao olhar dos outros, às palavras dos outros. A retrospectiva da obra de Paula Rego que é esta quarta-feira inaugurada na Tate Britain, de Londres, fica agora, devido às restrições impostas pela pandemia, demasiado longe para quem vive fora do Reino Unido, mas nem por isso deixa de merecer toda a atenção. São mais de cem obras desta pintora nascida em Portugal que fez carreira, sobretudo, a partir de Inglaterra e que chega finalmente a um dos principais palcos das artes visuais britânicas. Fotogaleria Imagem anterior Imagem seguinte A partir de 7 de Julho, a Tate Britain vai ser palco da maior exposição retrospectiva da obra de Paula Rego, artista-chave na arte portuguesa e mundial. Criados entre 1950 e 2010 e reunidos numa antológica a que as comissárias Elena Crippa e Zuzana Flašková chamaram apenas Paula Rego, as pinturas, gravuras, colagens, pastéis, desenhos e esboços expostos acompanham toda a trajectória da artista, que é o mesmo que dizer que contam a história da sua vida, já que nela a mulher e a obra são uma e a mesma coisa, gosta de dizer. “As suas pinturas levam-nos numa viagem de vingança e auto-afirmação, à medida que as raparigas tomam o poder, caudas dos cães são cortadas, meninas pintam homens velhos, criadas pobres matam as suas patroas ricas e meninas vítimas de abuso são protegidas por um anjo, que por elas faz justiça”, escreve Elena Crippa, curadora das colecções de arte moderna e contemporânea britânica da Tate, no texto que abre o catálogo da exposição. “Não existe apenas dor ou raiva, mas também uma atitude maliciosa e subversiva que se delicia com o humor negro e as alusões atrevidas.” Com a sua curadora assistente, Zuzana Flašková, Crippa reuniu um corpo de trabalhos que lhe permite fazer uma biografia de Paula Rego pondo em evidência o contexto em que as obras expostas foram produzidas, seja o da ditadura encabeçada por Salazar que se vivia em Portugal quando nos anos 50 foi estudar para a prestigiante Slade School de Londres, e quando, em 1960, pintou S. Vomiting the Pátria; seja o do pós-primeiro referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez em Portugal, que em 1998 levou à série Aborto. Tudo era mais difícil para as mulheres. O mundo da arte não era diferente. Era mais difícil ser levado a sério. Os donos das galerias achavam que as mulheres desistiriam do trabalho quando tivessem filhos. Tive três filhos e continuei." Paula Rego, pintora Os dois períodos estão, naturalmente, representados nesta retrospectiva que atribui especial atenção aos anos 1980, para muitos o período mais fulgurante da produção de Paula Rego. A Filha do Polícia, pinturas da série Vivian Girls, A Dança e O Cadete e a Irmã fazem parte do lote de pinturas escolhidas de uma década em que a artista teve de se despedir do marido, o também pintor Victor Willing, figura marcante na sua vida e, por isso, na sua obra (Vic Willing morreu em 1988, depois de ter vivido mais de 20 anos com esclerose múltipla). Velhos amigos “Uma retrospectiva na Tate é aquilo com que os artistas da minha geração sonhavam”, diz Paula Rego ao PÚBLICO numa breve entrevista por email em que Nick Willing, o mais novo dos seus três filhos, regista as suas respostas. “E a minha exposição está na Tate Britain. A Tate original. É uma grande honra para qualquer artista, mas eu pensei que era demasiado estrangeira para ser aceite lá. Sou britânica desde 1959, mas não sou inglesa, sou portuguesa.” Rego visitou a exposição ainda em montagem na passada quinta-feira na companhia de Nick e Cas Willing, os dois filhos que estiveram envolvidos na sua concretização. A maioria das obras, garante o primeiro, estavam já nas paredes e Paula Rego ficou “radiante”. “Cada vez que entrava numa sala, soltava uma gargalhada — coisa que ela costuma fazer quando acha que algo é tão extraordinário que é difícil de acreditar”, conta Nick. “Foi muito emocionante para mim também. Eu cresci com estas pinturas, posei para algumas, agonizei com outras que trouxeram dificuldades à minha mãe, deliciei-me com aquelas que saíram bem… Foi um pouco como se me estivesse a reencontrar com irmãos e irmãs que eu não via há anos.” Na exposição há obras saídas das aclamadas séries Aborto e Dog Woman, dos anos 1990 e 2000, que estão certamente entre as que “saíram bem”; assim como exemplares de Possession (2004), conjunto de pinturas que reflecte uma luta interior (contra a depressão) e décadas de experiência com a terapia. “Tenho orgulho em ver tantos trabalhos expostos”, diz Paula Rego, que fez algumas sugestões de alternativas às curadoras, sempre que uma pintura que pretendiam não estava, por algum motivo, disponível. “Alguns destes trabalhos são velhos amigos que não vejo há muitos anos. A pintura que ganhou o prémio de Verão está lá.” Refere-se a Under Milk Wood (1954), que fez quando ainda estudava na Slade, escola em que viria a conhecer Victor Willing — descreve o ambiente que nela se vivia e o primeiro encontro sexual com o futuro marido com uma honestidade brutal e desarmante no documentário Paula Rego, Histórias & Segredos (2017), que Nick Willing realizou — e em que a desigualdade no tratamento de alunos e alunas era evidente. Se lhe perguntamos hoje, época em que se discute cada vez mais a representação das mulheres artistas em galerias e museus, se o seu género tornou mais difícil o reconhecimento profissional, Rego, que sempre se disse feminista, não hesita: “Tudo era mais difícil para as mulheres. O mundo da arte não era diferente. Era mais difícil ser levado a sério. Os donos das galerias achavam que as mulheres desistiriam do trabalho quando tivessem filhos. Tive três filhos e continuei. Tive sorte porque tinha quem cuidasse deles.” Rego não se surpreenderia se um dia ficasse a saber que o facto de ser mulher tinha, de algum modo, atrasado a sua carreira, mas prefere dizer que é muito difícil para todos os artistas, independentemente do seu género, vender os seus trabalhos e fazer exposições. “Eu tive sorte e azar. Foram precisos muitos anos para chegar a algum lado.” “Em 60 anos, tudo muda” Se Paula Rego, com 86 anos, fosse uma heroína padrão ao estilo da Marvel ou da DC Comics — sabemos que não é, desde logo porque nada nela é convencional — o seu superpoder seria o da imaginação. Tudo porque, sem fatos ou efeitos especiais, munida apenas de carvão, tintas ou pastel, também ela cria mundos alternativos a partir dos que conhece: da literatura, do cinema, da banda desenhada, da vida. E arrasta-nos para eles em obras que intrigam, interpelam, inquietam, espantam. Obras que, por mais que as fixemos, mantêm intacto o mistério — o segredo — que guardam. Isto mesmo quando é Paula Rego quem diz (fê-lo a Kate Kellaway, do diário The Guardian) que “fazer quadros pode revelar coisas que mantemos secretas”. Sendo “pode”, aqui, a palavra-chave. Paula Rego já não mantém o ritmo de trabalho que tinha em 2017, mas continua a ir ao estúdio com frequência. É um espaço em Camden, zona Norte de Londres, repleto de obras em curso, tintas, pincéis, bonecos e outros materiais com que faz, na companhia de Lila, modelo e assistente fiel que a acompanha há décadas, os cenários que usa para pintar, por vezes inspirados em obras literárias, outras em memórias de infância que mistura com referências do cinema ou da pintura antiga. “Ao longo de 60 anos, tudo muda. A minha mãe costumava dizer que mudar é sempre bom, mesmo quando é para pior”, diz a pintora, sem concretizar, quando lhe pedimos que nos fale das transformações que a sua pintura sofreu nos últimos anos. “De vez em quando, o meu trabalho muda muito. Ele decide quando, e eu sigo.” Jonathan Jones, crítico de arte que escreveu no The Guardian que as obras “fenomenais” de Paula Rego não mereciam uma montagem tão má (ficou particularmente insatisfeito com o azul-turquesa escolhido para as paredes de uma das salas), reconhece-lhe as influências da “experiência ibérica” (catolicismo e ditaduras no século XX) e a capacidade para contar histórias surreais e misteriosas, cujo cenário desordenado deixa o espectador perante um “enigma poético”. Cada vez que [Paula Rego] entrava numa sala [da retrospectiva], soltava uma gargalhada — coisa que ela costuma fazer quando acha que algo é tão extraordinário que é difícil de acreditar” Nick Willing, realizador Rejeita, no entanto, a proposta das curadoras, que procuram, segundo Jones, que o visitante veja a arte de Paula Rego como uma reivindicação constante. “[Na exposição] é-nos dito, repetidamente, que vejamos a arte como um protesto. Não é. É arte. E quando somos capazes de ultrapassar as irritações desnecessárias [outra vez a cor das paredes] e chegar àquela incrível Dog Woman, descobrimos que é uma arte magnífica.” Paula Rego, que percorreu com alegria a exposição, está agora a trabalhar de novo a figura da Virgem Maria, que ousou pintar em trabalho de parto na série que fez para a capela do Palácio de Belém. Desta vez, diz-nos, “Jesus é um daqueles bonecos que imitam os pilotos das companhias áreas”.

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