sábado, 3 de junho de 2017

O cerco de Leninegrado, Chostakovich, e a reescrita da história

Jenny Farrell    03.Jun.17    Outros autores
Sobe de tom a agressividade da NATO, que avança em direcção ao leste da Europa e instala no terreno um dispositivo militar com condições para desencadear uma acção de guerra de grande escala. Este texto recorda o horror da agressão nazi à URSS e o papel que não apenas o povo em armas mas também a cultura e a arte desempenharam na derrota do nazi-fascismo. A memória histórica dos povos é uma arma em defesa da paz.
A guerra-fria contra a Rússia – e anteriormente contra a União Soviética – continua. Inclui o apagamento da memória pública das muitas atrocidades cometidas pela Alemanha nazi sobre a população soviética e o heróico papel assumido por esta na derrota do fascismo.
Em 22 de Junho de 1941 a Alemanha invadiu a União Soviética. Daí resultou uma mortandade com proporções de holocausto: pereceram 25 milhões de soviéticos, mais de metade do total de mortos na Segunda Guerra Mundial.
Um dos mais horríveis actos de barbárie foi o bloqueio de Leninegrado pelos alemães. Por mais de 900 dias, de 8 de Setembro de 1941 a 27 de Janeiro de 1944, foram cortados todos os abastecimentos e o povo de Leninegrado foi sistematicamente condenado a morrer à fome. Morreu mais de um milhão de cidadãos de Leninegrado.
Avançamos rapidamente até Abril de 2017, quando um fatal ataque terrorista (realizado por grupos mais do que por Estados) tem lugar em S. Petersburgo (Leninegrado). Depois de ataques semelhantes em cidades da Europa Ocidental, e como expressão de solidariedade, a bandeira nacional alemã fora projectada sobre a porta de Brandeburgo, em Berlim. Mas desta vez isso não foi feito porque, segundo o presidente da câmara – nascido em Berlim Leste – S. Petersburgo não tem qualquer “relação especial” com Berlim. É possível que o branqueamento da história tenha feito com que nunca tivesse ouvido falar de Leninegrado.
O cerco de Leninegrado foi registado não apenas em livros mas também em música. O compositor Dmitri Chostakovich residia na altura em Leninegrado. Começou a trabalhar numa sinfonia imediatamente após o início do ataque, exprimindo as suas ideias sobre a vida soviética e sobre a capacidade do seu povo para derrotar os fascistas. É a sua Sétima Sinfonia, conhecida como Leninegrado.
Tem quatro andamentos. O primeiro é intitulado “Guerra” e inicia-se com música de carácter lírico descrevendo a pacífica vida na URSS antes da invasão fascista. Um solo de violino é interrompido pelo ressoar de um tambor distante e pelo “tema da invasão”, que é repetido doze vezes por um número crescente de instrumentos, aumentando sempre em volume e em estridência, criando um profundo sentimento de mal-estar. Tambores militares ritmam esta secção, que termina com um clamor de sofrimento e horror. Segue-se uma passagem mais calma – um solo de flauta, depois um fagote, chorando os mortos. O acompanhamento é fragmentado, exprimindo o lamento pela gente abatida. Dominam as dissonâncias.
No segundo andamento, “Memórias”, o ambiente muda para tempos mais felizes, algumas melodias de dança, embora uma nota de tristeza esteja também presente.
A música do terceiro andamento, “Largas extensões da nossa terra”, afirma o heroísmo do povo, o seu humanismo, e a grande beleza natural da terra russa. O andamento é um diálogo entre um coral, exprimindo a satisfação gerada pelo esplendor da terra pátria, e a voz solista, os violinos, exprimindo o tormento individua. Tanto o segundo como o terceiro andamento exprimem a convicção de Chostakovich de que “a guerra não destrói necessariamente os valores culturais.”
Chostakovich comentou acerca do andamento final, “Vitória”: “A minha ideia de vitória não é a de algo brutal; será melhor explicada como a vitória da luz sobre as trevas, da humanidade sobre a barbárie, da razão sobre a reacção.” O andamento inicia-se descrevendo, musicalmente, as pessoas trabalhando em tempo de paz, cheio de esperança e de felicidade, a que os tambores e armas de guerra se vão sobrepondo. A música marcha, luta, e resiste.
A vitória não chega facilmente. Chostakovich começa com o ressoar dos tímpanos que concluiu o terceiro andamento e acrescenta-lhe gradualmente outras vozes. A música evolui lentamente em direcção à sua conclusão, com fanfarras dos metais e o estrondo dos címbalos. Força o seu caminho até um brilhante dó maior – a tonalidade da vitória. Todavia, os acordes finais desta magnífica tonalidade contêm um som dolorido. O reconhecimento pleno da realidade, o inimaginável sofrimento da guerra, não permite que a sinfonia termine em simples triunfo.
Chostakovich compôs a maior parte da sinfonia na Leninegrado cercada. Vários meses após o início do bloqueio, e apesar das objecções que colocou, o governo soviético evacuou a família Chostakovich juntamente com outros artistas.
A Sinfonia Leninegrado foi tocada a 9 de Agosto de 1942 na sua cidade natal cercada. A partitura foi transportada por via aérea sobre as linhas nazis. A orquestra tinha apenas quinze músicos, mas foram traduzidos mais da frente de combate.
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A fotografia que ilustra este artigo é dessa ocasião.
Uma clarinetista que interveio nesta interpretação histórica, Galina Lelyukhina, recordou os ensaios: “Disseram na rádio que todos os músicos sobreviventes estavam convidados. Era muito difícil andar. Eu estava doente com escorbuto e doíam-me muito as pernas. A princípio éramos nove, mas depois chegaram mais. O maestro, Eliasberg, foi trazido de trenó, porque estava muito enfraquecido pela fome.”
A 9 de Agosto de 1942 a sala de espectáculos estava repleta, com as portas e janelas abertas para que os que estavam fora pudessem ouvir. A música foi transmitida por altifalantes nas ruas e na frente de combate, de forma a inspirar a nação inteira. O Exército Vermelho preveniu os planos alemães para impedir o acontecimento bombardeando antecipadamente o inimigo para assegurar as duas horas de silêncio necessárias para o concerto.
Uma sobrevivente do bloqueio, Irina Skripacheva, recorda: “Esta sinfonia teve em nó um enorme impacto. O ritmo induzia um sentimento de elevação, de voo…Ao mesmo tempo sentíamos o ritmo assustador das hordas alemãs. Foi inesquecível e esmagador.”
Setenta e cinco anos depois, tanques e tropas da NATO (alemãs incluídas), instaladas ao longo da fronteira ocidental da Rússia, preparam-se para a guerra.
■ A Sétima Sinfonia de Chostakovich, Leningrado, está disponível em Youtube.
Fonte: http://www.communistpartyofireland.ie/sv/10-leningrad.html

in ODiario.info

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